São Paulo, Quinta-feira, 16 de Dezembro de 1999


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CONTARDO CALLIGARIS
O sumiço do erotismo de cada dia

Os brasileiros nos EUA, sejam eles emigrantes de verdade ou de luxo, expressam frequentemente uma queixa. Alegam uma falta de erotismo cotidiano, daqueles sinais de desejo (toques, olhares, sopros e meias palavras) que não precisam ir a lugar nenhum, mas roçam a fantasia. Os homens lamentam a ausência dos tórridos olhares de morenas da praia. As mulheres chegam a falar de viagens ao Brasil como cura para o ego, um jeito de passar analgésico no narcisismo ferido e se sentirem olhadas de novo.
Talvez a queixa se justifique. Mas a explicação me mata, é sempre a mesma: o puritanismo dos primeiros colonos americanos -que se tornou um chavão intolerável.
Ora, há algumas razões para pensar que esse sumiço do erotismo cotidiano tenha uma causa mais inquietante e menos especificamente americana. O valor erótico dos corpos me parece ameaçado de desaparecer em qualquer sociedade neoliberal que se queira eficiente. Como isso?
Tomemos um debate recente. Nas Forças Armadas americanas, homens e mulheres servem juntos. O último baluarte da separação dos sexos são os submarinos. A Marinha não quer construir dormitórios e banheiros separados num espaço tão exíguo: custa caro e compromete a quantidade de armamentos transportados. Também não é bom complicar tarefas de combate com eventuais desejos e amores.
O establishment (masculino) observa que "o homem não é de ferro" e não deve ser induzido a tentação. As mulheres contestadoras poderiam dizer a mesma coisa, pois elas também não são de ferro. Reivindicando igualdade, elas poderiam, portanto, exigir submarinos exclusivamente femininos.
Mas não é o que acontece: as mulheres reagem se sentindo discriminadas por serem consideradas desejáveis. Protestam que elas devem ser apreciadas apenas como sujeitos capazes de operar submarinos e pedem para ser integradas com os marinheiros homens.
É óbvio que o pano de fundo dessa reivindicação é a discriminação brutal que as mulheres sofrem quando no ambiente de trabalho e na sociedade em geral. Elas são prezadas (ou desprezadas, tanto faz) em razão de seu sex appeal.
Mesmo assim, é notável que a reivindicação não peça submarinos só femininos, mas prefira prometer que as mulheres, como marinheiros, não terão mais sexo: não poderão ser desejadas e também não desejarão. Para sermos todos iguais e competir com as mesmas chances, parece ser necessário esquecer os sexos que nos separam, nos unem e, por isso, atrapalham.
Surge, portanto, uma dúvida: e se tudo isso fosse uma astúcia da razão neoliberal? Pensemos bem: um fundamento básico do neoliberalismo globalizado é que a mão-de-obra seja abstrata. Ou seja, intercambiável. Gay indiano, transexual alemã, mulher negra, lésbica americana, se forem engenheiros, são engenheiros iguais.
Esperam-se de todos a mesma eficiência e o mesmo rendimento e deve ser sempre possível trocar um pelo outro. Isso aparece intuitivamente como um progresso: seja qual for o sexo, a orientação sexual, a etnia ou a cor, todos devem ter os mesmos direitos. O valor de quem trabalha não deve depender do ser concreto de cada um, por exemplo, de seu desejo sexual.
Ótimo, mas não esqueçamos que isso satisfaz as exigências do mercado moderno de trabalho, o qual pede que as pessoas se despojem de sua singularidade, a começar por seu sexo.
É curioso, pois, à primeira vista, o mundo de hoje não parece aborrecidamente uniforme. Ao contrário, ele se balcaniza em miríades de grupos distintos, começando pela oposição entre homens e mulheres. Dividimo-nos em grupos justamente para reivindicar nosso direito à igualdade. As mulheres querem servir nos submarinos, os pais divorciados querem a guarda dos filhos tanto quanto as mães, os gays querem ser aceitos como supervisores de escoteiros etc.
Essas reivindicações instigam particularismos, constituem grupos e identidades diversas. A sociedade parece tolerar muito bem esse esmigalhamento, à condição que ele seja sem consequência do ponto de vista que importa. Ou seja, podemos nos diversificar o quanto quisermos, mas sem atrapalhar o caráter abstrato do trabalho e da subjetividade.
As mulheres, por exemplo, pedem para servir nos submarinos junto com os homens. Não há problema, porque, lutando por esse direito, elas mesmas garantem a repressão de seu próprio desejo sexual: serão marinheiros abstratos, assexuados, perfeitamente funcionais.
Dentro desses limites, qualquer extravagância é aceita e mesmo encorajada, pois ela apenas diversifica o consumo, o que é ótimo para os negócios.
Nos domingos podemos nos reunir em grupos, da taverna irlandesa ao galpão crioulo, passando até por reuniões políticas de reivindicação do direito à diferença. Na intimidade, como nas férias ou na noite, poderemos viajar para qualquer Taiti.
Mas, no trabalho e na vida social, devemos ser todos intercambiáveis.
Talvez seja essa a fonte da repressão na modernidade: para que o trabalho e a sociedade se organizem entre cidadãos iguais em direito, é necessário reprimir o que há de mais concreto e singular na subjetividade de cada um. Duro preço para o progresso.

E-mail: ccalligari@uol.com.br


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