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CONTARDO CALLIGARIS
O sumiço do erotismo de cada dia
Os brasileiros nos EUA, sejam
eles emigrantes de verdade ou de
luxo, expressam frequentemente
uma queixa. Alegam uma falta de
erotismo cotidiano, daqueles sinais de desejo (toques, olhares, sopros e meias palavras) que não
precisam ir a lugar nenhum, mas
roçam a fantasia. Os homens lamentam a ausência dos tórridos
olhares de morenas da praia. As
mulheres chegam a falar de viagens ao Brasil como cura para o
ego, um jeito de passar analgésico
no narcisismo ferido e se sentirem
olhadas de novo.
Talvez a queixa se justifique.
Mas a explicação me mata, é sempre a mesma: o puritanismo dos
primeiros colonos americanos
-que se tornou um chavão intolerável.
Ora, há algumas razões para
pensar que esse sumiço do erotismo cotidiano tenha uma causa
mais inquietante e menos especificamente americana. O valor
erótico dos corpos me parece
ameaçado de desaparecer em
qualquer sociedade neoliberal
que se queira eficiente. Como isso?
Tomemos um debate recente.
Nas Forças Armadas americanas,
homens e mulheres servem juntos.
O último baluarte da separação
dos sexos são os submarinos. A
Marinha não quer construir dormitórios e banheiros separados
num espaço tão exíguo: custa caro
e compromete a quantidade de
armamentos transportados.
Também não é bom complicar tarefas de combate com eventuais
desejos e amores.
O establishment (masculino)
observa que "o homem não é de
ferro" e não deve ser induzido a
tentação. As mulheres contestadoras poderiam dizer a mesma
coisa, pois elas também não são
de ferro. Reivindicando igualdade, elas poderiam, portanto, exigir
submarinos exclusivamente femininos.
Mas não é o que acontece: as
mulheres reagem se sentindo discriminadas por serem consideradas desejáveis. Protestam que elas
devem ser apreciadas apenas como sujeitos capazes de operar
submarinos e pedem para ser integradas com os marinheiros homens.
É óbvio que o pano de fundo
dessa reivindicação é a discriminação brutal que as mulheres sofrem quando no ambiente de trabalho e na sociedade em geral.
Elas são prezadas (ou desprezadas, tanto faz) em razão de seu
sex appeal.
Mesmo assim, é notável que a
reivindicação não peça submarinos só femininos, mas prefira prometer que as mulheres, como marinheiros, não terão mais sexo:
não poderão ser desejadas e também não desejarão. Para sermos
todos iguais e competir com as
mesmas chances, parece ser necessário esquecer os sexos que nos separam, nos unem e, por isso, atrapalham.
Surge, portanto, uma dúvida: e
se tudo isso fosse uma astúcia da
razão neoliberal? Pensemos bem:
um fundamento básico do neoliberalismo globalizado é que a
mão-de-obra seja abstrata. Ou seja, intercambiável. Gay indiano,
transexual alemã, mulher negra,
lésbica americana, se forem engenheiros, são engenheiros iguais.
Esperam-se de todos a mesma
eficiência e o mesmo rendimento
e deve ser sempre possível trocar
um pelo outro. Isso aparece intuitivamente como um progresso: seja qual for o sexo, a orientação sexual, a etnia ou a cor, todos devem ter os mesmos direitos. O valor de quem trabalha não deve depender do ser concreto de cada
um, por exemplo, de seu desejo sexual.
Ótimo, mas não esqueçamos
que isso satisfaz as exigências do
mercado moderno de trabalho, o
qual pede que as pessoas se despojem de sua singularidade, a começar por seu sexo.
É curioso, pois, à primeira vista,
o mundo de hoje não parece aborrecidamente uniforme. Ao contrário, ele se balcaniza em miríades de grupos distintos, começando pela oposição entre homens e
mulheres. Dividimo-nos em grupos justamente para reivindicar
nosso direito à igualdade. As mulheres querem servir nos submarinos, os pais divorciados querem a
guarda dos filhos tanto quanto as
mães, os gays querem ser aceitos
como supervisores de escoteiros
etc.
Essas reivindicações instigam
particularismos, constituem grupos e identidades diversas. A sociedade parece tolerar muito bem
esse esmigalhamento, à condição
que ele seja sem consequência do
ponto de vista que importa. Ou seja, podemos nos diversificar o
quanto quisermos, mas sem atrapalhar o caráter abstrato do trabalho e da subjetividade.
As mulheres, por exemplo, pedem para servir nos submarinos
junto com os homens. Não há problema, porque, lutando por esse
direito, elas mesmas garantem a
repressão de seu próprio desejo sexual: serão marinheiros abstratos,
assexuados, perfeitamente funcionais.
Dentro desses limites, qualquer
extravagância é aceita e mesmo
encorajada, pois ela apenas diversifica o consumo, o que é ótimo
para os negócios.
Nos domingos podemos nos reunir em grupos, da taverna irlandesa ao galpão crioulo, passando
até por reuniões políticas de reivindicação do direito à diferença.
Na intimidade, como nas férias
ou na noite, poderemos viajar para qualquer Taiti.
Mas, no trabalho e na vida social, devemos ser todos intercambiáveis.
Talvez seja essa a fonte da repressão na modernidade: para
que o trabalho e a sociedade se organizem entre cidadãos iguais em
direito, é necessário reprimir o
que há de mais concreto e singular na subjetividade de cada um.
Duro preço para o progresso.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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