São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 2000

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"ESSE OFÍCIO DO VERSO"/"UM ENSAIO AUTOBIOGRÁFICO"

Borges "marginal" vem à luz



MARIO SERGIO CONTI
DA REPORTAGEM LOCAL



"E sse Ofício do Verso" e "Um Ensaio Autobiográfico" trazem textos duplamente marginais de Jorge Luis Borges. Marginais porque não foram escritos: a matriz deles é oral. E outra vez marginais porque foram concebidos e compostos em inglês, e não em espanhol, para platéias americanas.
Os dois textos, que não constam das "Obras Completas", foram feitos por Borges no mesmo período de sua vida, aquele em que, septuagenário e cego, ele consolida sua reputação internacional.
"Esse Ofício do Verso" é o registro das seis palestras que Borges fez na Universidade Harvard, no segundo semestre de 1967. As fitas com as gravações das conferências ficaram mais de 30 anos num cofre da universidade até serem descobertas, transcritas e publicadas.
"Um Ensaio Autobiográfico" foi ditado por Borges a Norman Thomas di Giovanni, seu tradutor para o inglês, no primeiro semestre de 1970. Com o título de "Notas Autobiográficas", ele foi publicado em setembro daquele ano pela revista "The New Yorker".
A fama do escritor fora da Argentina (e mesmo no país, segundo a observação irônica do próprio Borges) começou a se firmar em 1961, quando ele dividiu com Samuel Beckett o Prêmio Formentor. No mesmo ano, alguns de seus escritos foram traduzidos para o inglês, e ele foi pela primeira vez aos Estados Unidos, para ser professor visitante da Universidade do Texas.
Em 1967, Borges foi convidado a ocupar durante um semestre letivo a prestigiada cátedra de poesia Charles Eliot Norton, em Harvard. Lá, fez as seis conferências. Na universidade, Borges começou a trabalhar com Norman Thomas di Giovanni, que o acompanhou a Buenos Aires, veio a traduzir dez de seus livros para o inglês e escreveu um longo ensaio sobre a sua obra.
Se as palestras em Harvard representaram o cume do prestígio acadêmico de Borges, a publicação de suas "Notas Autobiográficas" na "The New Yorker" teve efeito semelhante junto ao público intelectual. Em 1970, a revista tinha uma circulação semanal de quase 500 mil exemplares. Acresce que a revista publicou um anúncio de uma página no "The New York Times" saudando a publicação do artigo de Borges em suas páginas.
Menos de um ano depois, o artigo foi publicado em português pela antiga editora Globo, numa tradução de Maria da Glória Bordini, com o título de "Perfis", num volume conjunto com os poemas de "Elogio da Sombra". O livro foi publicado no Brasil concomitantemente às suas obras-primas: os contos de "O Aleph" e "Ficções".
"Um Ensaio Autobiográfico" foi composto ao longo de três meses e revisto inúmeras vezes. É uma autobiografia bastante peculiar para os dias de hoje, repletos de confissões escandalosas: não há nela quase nada de pessoal. Borges não se refere nem uma única vez ao seu casamento e muito menos a amores, namoros, sexo etc. Não há paixões extra-literárias na sua existência.
Borges nasceu e viveu para as letras. Cresceu numa biblioteca, seus pais o incentivaram a ser escritor, educou-se na Suíça, frequentou grupos literários na Espanha, foi colaborador de jornais e revistas na Argentina.
Só teve um emprego fixo na vida. Durante nove anos foi funcionário de uma biblioteca de subúrbio. Passava os dias lendo e escrevendo. "Foram nove anos de contínua infelicidade", conta ele. Lá escreveu, contudo, três de seus contos inesquecíveis: "A Loteria em Babilônia", "As Ruínas Circulares" e "A Morte e a Bússola".
Em 1946, com a subida de Juan Domingo Perón ao poder, Borges saiu da biblioteca: por ter apoiado os aliados na Segunda Guerra Mundial, foi "promovido" a inspetor de aves e coelhos de mercados municipais.
Borges se demitiu do cargo e passou a viver de palestras. Falava sobre budismo, poesia germânica medieval, Cervantes, Blake, Heine, Dante etc. Percorreu o Uruguai e o interior da Argentina fazendo conferências. À medida que sua cegueira avançava, tornava-se mais e mais um intelectual oral. Em poesia, abandonou o verso livre em favor das formas clássicas, por mais fáceis de manejar oralmente e de decorar.
"Esse Ofício do Verso" ecoa os anos que Borges viveu dando palestras. Com a diferença que as de Harvard foram feitas em inglês. O que nelas sobressai é a memória extraordinária de Borges. Ele cita de cor dezenas de poemas, passagens de peças, trechos de ensaios, em inglês, espanhol, francês, alemão, grego e latim, e cita quase 200 autores em pouco mais de dez páginas.
Essa fantástica erudição não se organiza num todo coerente. Borges tem horror à teoria. Suas observações são de um leitor inteligente e idiossincrático, que passeia ao acaso pela história da literatura ocidental.
Tanto "Esse Ofício do Verso" quanto "Um Ensaio Autobiográfico" não representam o melhor de Borges. São trabalhos incidentais, compostos no seu período de decadência. Eles têm algo de complacente e conformista.
Também não representam o pior do escritor pelo bom motivo que o argentino não tem "pior". Tudo o que ele fez tem um nível muito acima do médio. O melhor de Borges está, nessa ordem, nos contos, nas poesias, nos ensaios e, por fim, na memorialística e nas conferências.



Um Ensaio Autobiográfico
   
Autor: Jorge Luis Borges
Tradução: Maria Carolina de Araujo e Jorge Schwartz
Editora: Globo
Quanto: R$ 17 (158 págs)





Esse Ofício do Verso    
Autor: Jorge Luis Borges
Tradução: José Marcos Macedo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 20 (160 págs.)




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