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Livros - Crítica/romance
Rushdie faz painel ambicioso
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
"Os Filhos da Meia-Noite"
é o romance mais ambicioso de Salman Rushdie,
mais ainda que "Os Versos Satânicos", que o tornaram célebre, mas o obrigaram a longa
reclusão por causa de um fatwa
emitido pelo aiatolá Khomeini.
É curioso que a primeira dessas duas obras, lançada no Reino Unido em 1981, mais tarde
receptora de diversas honrarias
literárias, de início tenha sido
rejeitada por sua casa editora, a
Jonathan Cape. "O autor devia
se concentrar em contos até
dominar a forma do romance",
dizia o relatório de leitura. Felizmente a editora não aceitou
esse primeiro exame e submeteu o romance a um segundo
escrutínio, que o recomendou.
De fato, parte do motivo pelo
qual "Os Filhos da Meia-Noite"
é visto como um livro ambicioso está na forma, desabonada
na primeira leitura. Falsamente frouxa, ela passa a idéia de
falta de coesão, quando, na verdade, cada frase é prova de como o autor tinha perfeita noção
do caminho narrativo a ser percorrido, e cada episódio está
alinhavado aos outros por uma
estreita teia de conexões.
E a mais forte das conexões, a
razão de ser, digamos, do romance, está na fusão entre a
trajetória pessoal do narrador,
Salim Sinai, e a história recente
da Índia. Como faz questão de
frisar esse herói picaresco: "(...)
nasci na Casa de Saúde do dr.
Narlikar em 15 de agosto de
1947 (....) no momento exato
em que a Índia chegou à independência, eu surgi no mundo".
Aos saltos, indo e voltando no
tempo, o narrador conta sua
epopéia sentimental. Ele começa mais de 30 anos antes de
seu nascimento, enfocando a
volta do avô à região da Caxemira. Médico formado na Alemanha, ele conhece a futura esposa por meio de um expediente ardiloso, que dá nome ao capítulo, "O Lençol Furado".
Muçulmanos devotos, os pais
de Nasim Ghani cobrem o corpo da filha adoentada com um
lençol atravessado por um pequeno furo. Por essa fresta, o
médico pode ver apenas a parte
do corpo a ser examinada.
Acontece que o interesse matrimonial dos pais da moça é
grande e, conquanto o recato
seja igualmente amplo, eles vão
revelando outros pedaços da
anatomia de Nasim, pois os padecimentos da jovem, ao invés
de diminuir, parecem só aumentar. Aos pedaços, o médico
vai juntando a imagem de Nasim, e acaba por apaixonar-se
por ela -não sem antes ter sido
brindado com a suprema visão
de suas nádegas.
De um só golpe, portanto, temos a convergência entre o social e o psicológico, o erótico e o
lírico, o geral e o anedótico, que
permeia toda a obra. Aos nacos
e sem ordem aparente, o narrador também vai descobrindo
um retrato de si, dos muçulmanos indianos e da Índia moderna. Trata-se, claro, de um retrato bastante especioso. Como o
médico, a partir dos pedaços, o
leitor só é capaz de formar impressões, e está, como o pobre
noivo, sujeito a enganos.
Além disso, conforme Rushdie confessa na nova introdução, esse painel se baseia em
sua biografia, embora só a tenha empregado como "material bruto". O autor também
nasceu em agosto de 1947. Seu
pai, sua mãe, a irmã, os amigos
de escola, a primeira namorada, de uma forma ou de outra,
aparecem aqui -assim como
Indira Gandhi, que não gostou
nada da forma como foi descrita e abriu um processo contra a
obra. Rushdie conta que o pai
ficou igualmente zangado com
o personagem inspirado nele
que ficou meses sem falar com
o filho.
Quer seja pelos dons "telepáticos" do narrador, quer seja
pelas incríveis coincidências
que permeiam sua vida, há uma
tendência em classificar "Os
Filhos da Meia-Noite" como
fantasia. Mas há poucas obras
atuais como esta, tão calcadas
no real.
OS FILHOS DA MEIA-NOITE
Autor: Salman Rushdie
Tradução: Donaldson M. Garschagen
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 64 (608 págs.)
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