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CONTARDO CALLIGARIS
A menina e o aviador
"Menina de Ouro", de Clint Eastwood, e "O
Aviador", de Martin Scorsese
(ambos em cartaz neste momento), são os candidatos mais fortes:
o Oscar de melhor filme e o de melhor diretor serão provavelmente
disputados entre eles.
"Menina de Ouro" conta a história de Maggie Fitzgerald, uma
garçonete que vem daquela classe
social que, na cultura americana,
é chamada "white trash" (lixo
branco). Maggie já passou dos 30
anos e, apesar disso, quer boxear.
"O Aviador" conta a história de
Howard Hughes, que nasceu num
berço de ouro (ou melhor, num
berço de maquinário para a extração de petróleo) e quis fazer
duas coisas: filmes e aviões. Dos
filmes que ele dirigiu, dois marcaram a história do cinema por suas
qualidades; eles pareceram, na
época, "excessivos", "Hell's Angels" pelos custos enormes e a filmagem que não acabava nunca e
"Scarface" pela violência das cenas. Quanto aos aviões, Howard
Hughes também concebeu modelos excessivos: o mais rápido e o
maior. O primeiro caiu; o segundo voou, mas ficou no estado de
protótipo.
"Menina de Ouro" é filmado
com uma simplicidade enxuta,
que traduz perfeitamente a brutalidade espartana do mundo do
boxe.
"O Aviador" é filmado num estilo ornado, que condiz com a excitação maníaca do Hughes cinematografista ou projetista e com
as repetições obcecantes nas quais
sua mente emperrava.
Com isso, os filmes parecem ter
pouco ou nada em comum. Salvo
que ambos nos tocam, misteriosamente, no íntimo. Digo misteriosamente, porque, em nossa maioria, somos (presumo) bastante diferentes tanto de Maggie Fitzgerald quanto de Howard Hughes.
Confesso que, entre o aviador e
a menina, prefiro a menina. Provavelmente porque nunca pilotei
um avião e nunca dirigi um filme;
em compensação, o boxe pagou
uma parte relevante de meus estudos superiores. Graças a ele, ganhei uma bolsa para defender as
cores de minha universidade. Conheço o cheiro de alvejante barato e de suor ranço que não sai do
corpo; conheço a volta das lutas
com uma cara que nem os amigos
identificam; conheço, sobretudo,
o enigma da determinação que
leva a encontrar, a cada dia, o caminho de uma sala de treino decadente não por um sonho de glória ou de sei lá quais riquezas,
mas por uma espécie de dedicação radical, inexplicável e necessária.
Se fizesse parte do júri do Oscar,
portanto, votaria no filme de
Eastwood, mas o filme de Scorsese
me toca da mesma forma. É que a
menina e o aviador têm algo em
comum: ambos desejam, forte e
obstinadamente. E não vale perguntar: eles desejam o quê? Às vezes, o verbo desejar é intransitivo.
Em sua paixão dominante, a menina e o aviador apostam tudo:
seu tempo, seus esforços infindáveis, suas pobres economias (no
caso de Maggie) ou suas riquezas
(no caso de Hughes).
Maggie e Hughes não querem
fama e sucesso; se isso acontecer,
tanto melhor, mas não é o essencial. O aviador, testemunhando
diante de uma comissão do Senado americano, explica a dedicação de sua vida afirmando que
ele constrói aviões "because this is
what I do" (porque isso é o que eu
faço). A menina poderia dizer a
mesma coisa: luto porque isso é o
que eu faço.
Ambos desejam por conta própria, apesar de seus pais ou contra eles. É só depois da morte dos
pais que Hughes se encontra livre
para investir todos os seus haveres na prática de suas paixões.
Quanto a Maggie, ela trilha seu
caminho enfrentando o escárnio
da mãe (que não por isso deixa de
aproveitar-se do sucesso da filha).
Em suma, o desejo que os anima é
uma invenção deles, é seu achado
próprio. Sabe aquela expressão,
"sentir-se realizado"? Pois bem, é
um sentimento que depende não
do sucesso que conseguimos, mas
de uma espécie de fidelidade a
nós mesmos, uma unidade com
nosso fazer. Não sou o que eu tenho, tampouco sou o resultado de
minha origem: sou o que faço.
Posso acabar mal, cair em chamas, mas o que importa é que cairei no avião que construí. Ou, como diz o velho Scrap em "Menina
de Ouro", o boxeador quer ter seu
"shot", sua chance. E não é apenas a chance de ganhar o título, é
a chance de viver a fundo por e
para aquilo que ele quis.
Quem viu "Edifício Master", de
Eduardo Coutinho, lembra-se
com comoção da cena em que um
aposentado narra sua vida, faz
um balanço que não é necessariamente jocoso e, mesmo assim,
canta para a câmara, imitando
Sinatra, "I did it my way", vivi como eu quis.
"Menina de Ouro" e "O Aviador" são inesquecíveis porque se
alimentam no âmago trágico da
subjetividade moderna. Eles contam duas versões da mesma grande história: a história do esforço e
do custo para sermos "nós mesmos".
O psicanalista francês Jacques
Lacan disse um dia que a única
culpa que a psicanálise reconhece
é a culpa de desistir de nosso desejo, o que, obviamente, não significa que quem se aventura a seguir
seu desejo seja feliz. Nada disso.
Como mostram Maggie Fitzgerald e Howard Hughes, desejar,
além de não ser banal, pode ser
um exercício cansativo, arriscado
e perigoso. Mas talvez seja o único
que nos pareça valer a pena.
@ - ccalligari@uol.com.br
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