São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 2000


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NOITE ILUSTRADA ERIKA PALOMINO
Nação eletrônica chega ao mundão de Momo

NOITE Ilustrada está de volta e seu principal assunto hoje é a identidade musical brasileira. O gancho, claro, é o Carnaval -e o tema se prova longe de estar esgotado. Com a entrada da música eletrônica nos trios elétricos baianos, o universo de house music, tecno e quetais penetra agora em território de proporções gigantescas e mais populares do que nunca, justamente o mundo de Momo, assunto seriíssimo no país.

DESTA vez saímos mesmo do mundinho (e quem lembra do início dos anos 90, quando assim ainda era chamado o palco das pistas de dança?). Entramos, nós da jovem nação eletrônica, na rota de colisão das culturas e viramos, de certa forma, o assunto de todo um país. Quem não foi, ficou sabendo. Quem não estava lá no trajeto Barra-Ondina viu pela Band, acompanhou pelos jornais, leu no Simão (que gostou) ou ouviu falar.
Afinal, pode uma manifestação nacional e original como o Carnaval baiano receber a intervenção e a intromissão de uma música "inventada" e produzida fora? Computadores e equipamentos começariam a substituir percussionistas e instrumentistas locais? Estaria caindo, por fim, um bastião de uma legítima música brasileira? Mas e o povão, gostou ou não gostou?

NUM resumo rápido, foi assim: o Olodum saiu na quinta com o DJ Buga, no circuito alternativo, na sexta na avenida Castro Alves com o Ilê-aiyê, no trio Redbull/ Mundo Mix, coordenado pelo agitador paulistano Beto Lago. Daniela Mercury, uma das rainhas do axé, levou a Salvador os DJs Mau Mau e Jon Carter, mais o produtor musical Dudu Marote.
Competições entre os dois núcleos à parte (e nem é isso que cabe aqui), a principal discussão recaiu sobre o último grupo, pelo item que chamou a atenção da mídia: a vaia. Aliás, as vaias. Duas vaias, em plena avenida. Mas vamos por partes. E você vai ver aqui, tecnicamente, como a coisa foi feita.

CONSTA que Daniela Mercury teve a idéia de importar o eletrônico para o Carnaval baiano ao tomar contato com a Love Parade, a maior parada de tecno do mundo, anual, que reúne até 1,5 milhão de pessoas em Berlim.
Chamou Dudu Marote e a produtora Simone Ruotolo, que chamaram Mau Mau (outros DJs convocados não puderam participar). Da banda dela, decidiu-se que ficariam a percussão, a guitarra, o baixo; saíram o teclado e o sopro. Num primeiro ensaio, a cantora apareceu com o lançamento Electrix, um rack chamado Mo-Fx, com distorção, trêmulo, flange e delay.
Com a possibilidade de soltar todos os efeitos ao mesmo tempo e por meio de um botão, Dudu Marote ia mandando o tempo das batidas que Mau Mau fazia, e os efeitos saíam sincronizados com o som dos toca-discos.
""A gente começou a usar esse efeito na voz dela de uma maneira bem radical e a mistura ficou muito legal. Pra tentar explicar melhor, a voz fica toda alterada, e eu ia desenvolvendo os loopings sincopados com a batida.
Enquanto isso, Dani cantava doideiras como "Batmacumba" e outras da Tropicália, até hinos do Ilê-aiyê", conta Dudu.
"Da minha parte", diz Mau Mau, "coloquei mais groove, próximo da batucada, para ela poder encaixar a voz. Houve uma passagem de som e logo depois eu já saí tocando. Fiquei de boca aberta: na primeira levada os músicos já pegavam e saíam no tom certinho. Eles são muito bons."
O técnico Lonardi (responsável pelo som de nove entre dez casas noturnas de São Paulo) e o engenheiro de som Nivaldo completavam o staff.

"ESTÁVAMOS tocando pra um povo na rua que estava animadíssimo pra dançar, mas frevo e axé. Até aquele momento, o que mais de moderno tinha ouvido era o Harmonia do Samba, e olha lá. O que eles tinham na ponta da língua era "cabelo raspadinho, estilo Ronaldinho" e outras pérolas do gênero", diz Dudu.
Ele diz que Mau Mau e Jon Carter "não fizeram concessões": "Não tocaram poperô, tocaram basicamente house. Depois de quatro anos tendo que aguentar o axé ameaçando nossos ouvidos, fomos lá e enchemos o saco deles durante cinco horas com música eletrônica. Doce vingança."
E o que aconteceu? "O povo ficou literalmente boquiaberto. E boquiaberto não significou aprovação ou reprovação. Significou perplexidade. Alguns poucos dançavam. Modernos em camarotes aprovavam. Mas o povo... na boa, não tava entendendo", conta o produtor.
Depois de uma hora e meia, Jon Carter assumiu. O gerador deu uma falhada e os toca-discos giraram sem sair som, durante uns trinta segundos. Foi o suficiente para afetar o início do set do inglês, que levou ainda uns quinze minutos para acertar o que ia tocar. Foi o momento da primeira vaia, mais ou menos duas horas depois da saída. "Fomos em frente, mas Jon não teve momentos brilhantes como o Mau no começo", admite Dudu Marote. Mau Mau voltou e, logo de cara, a segunda vaia. Daniela Mercury respondeu com ironia e disparou: "Faço Carnaval há 20 anos, posso inventar alguma coisa? É uma curtição, a rua é de todo mundo", conforme relatou o repórter Pedro Alexandre Sanches nesta Folha.
"Já passei por algumas situações bem esquisitas no Carnaval, quando era iniciante, mas como esta nunca. Pensei que fosse ser mais simples. Reagi às vaias porque você não pode deixar de enfrentar, no bom sentido. No Carnaval, o enfrentamento é contínuo", disse Daniela Mercury.

"DEPOIS que ela falou com as pessoas, o povo terminou acatando, aplaudindo", diz Mau Mau, queixando-se que, em São Paulo, "só falaram da parte negativa". Segundo ele, houve grandes momentos, com "Samba Magic", as produções de Ben Sims e as do próprio M4J, em especial "Capoeira" e o remix de "Stage Piano". Segundo o DJ, "era um mar de gente que arrepiava. Depois da segunda fala dela, depois da segunda vaia, eu fiquei tão emocionado que chorei. Era muita emoção junta. Você ia andando e ia vendo a reação das pessoas: gente que gritava, gente que ficava parada. Era como se eu estivesse entrando num continente novo".

MAU Mau diz que houve preconceito dos dois lados, desde do underground até daqueles que gostam de música baiana. "Tem muita gente que é radical. Pega um estilo musical e acha que só aquilo é que é bom. Ah, você vai tocar no Carnaval com a Daniela Mercury, ah, então virou pop? Estou fazendo o meu trabalho. Já estou acostumado com esse tipo de coisa, desde os tempos do Hell's Club.
"Gosto de experimentar, isso sim é underground. Procuro o inédito, e estou curtindo o que faço. Quem estiver aberto a isso, tudo bem, se não, tudo bem também. Ninguém é obrigado a gostar. Eu já estava fazendo isso no estúdio e agora tive a oportunidade de fazer ao vivo. Não poderia passar batido. Meu trabalho sempre foi esse, com reações positivas ou negativas. Gosto de arriscar,de fazer coisas novas. É melhor do que pegar os 10 discos da parada e tocar."

JÁ Beto Lago reclama que foi prejudicado. "O Dudu Marote copiou minha idéia e vendeu para a Daniela Mercury. Tentei ainda unir os dois projetos, mas não foi possível. No primeiro dia, na quinta, estávamos previstos para sair às 22h. Saímos às 3h e chegamos ao final às 7h, sozinhos, meio deprimente. Buga não se entendeu com o Olodum, foi péssimo. Depois, acordei com o telefonema que me avisava que, por pressão dos outros blocos, não poderíamos mais desfilar ali, que deveríamos desfilar no circuito popular. Fomos então, na sexta, para a praça Castro Alves. Desta vez rolou. Os meninos do Ilê-aiyê são mais jovens. Ensaiamos e separamos os instrumentos por grupos. Daí foi tudo redondo. Passamos impunes, ninguém vaiou."

""PARA a gente aparecer e ter um espaço lá fora tem que fazer alguma coisa diferente do que eles já fazem. Talvez nem seja esse caminho que eu estou fazendo, talvez seja outro. Mas eu estou tentando", disse Mau Mau.
Há especulações de que o trio elétrico/eletrônico de Daniela Mercury possa se apresentar em julho na Love Parade alemã. Justamente tocando axé com house e tecno? "Eu iria com o maior prazer e com o maior orgulho", diz o DJ.

OUVI algumas pessoas sobre o assunto. "Acho que a música eletrônica deve se fundir com o que der, seja underground ou não, cada um faz sua opção musical. Sou a favor do trio e de sua massificação, até porque, daí, mais gente pode vir a gostar de música com mais qualidade", diz Marcão Morcerf, DJ de Maceió radicado em São Paulo.
"Daniela soube fazer direito e não jogou os DJs na fogueira, sempre anunciando quem eram e quanto são importantes na cena eletrônica. Devagar ela foi conquistando e os deixando trabalhar. O povo pulava a três metros do chão. Já o trio da RedBull foi um pouco deixado de lado. Seguraram a sua saída e consequentemente tudo foi mais difícil de assimilar.
"Por mais que houvesse gente criticando (e colocando o dedo pra baixo), mesmo assim existiu uma integração: muitos turistas, clubbers baianos e o povo dançavam juntos", contou Frajola, que foi dono do finado clube Florestta, agora novamente em Salvador.

"SIM, houve vaias, mas ninguém falou que houve muitos, muitos aplausos. Era um trio aberto, sem cordas, e nenhuma violência; o povo tava animadíssimo. Achei a iniciativa bacana, mostra uma saída feliz para a decadência do axé, que já é falado por aqui.
"Os DJs fizeram um crossover das grooves sobre o que há de tribal no axé; quem sabe daí não saia algo local? E olha, essas fusões já acontecem há muito entre sons mais tribais e roots com os grooves tecnológicos, mas sempre tem gente retrógrada e apegada às fórmulas rígidas reclamando", diz Claudio M., pesquisador do núcleo Pragatecno, do eixo Maceió-Salvador. Quer mais? Este ano não tocou só samba na Banda de Ipanema, que estava maior do que nunca no Rio. A onda dos poposudos e poposudas (gíria de funkeiro pra quem tem bunda grande) tomou conta e o carro de som causou gritaria quando tocou o set de funkão clássico, com direito a voltmix e tudo. Vários grupos de barbies faziam as dancinhas do funk em diversos pontos.

DE fato, é irreversível. Este Carnaval 2000 põe o eletrônico na roda. Beto Lago diz que vai voltar no próximo Carnaval e que vai lançar até disco com o seu Afro-tecno. Para provarmos que não somos colonizados pela cultura de pistas importada, só faltam mesmo os DJs brasileiros à altura dos DJs de Londres (especula-se o cachê de Jon Carter tipo R$ 8.000; já cheguei a ouvir R$ 15 mil). De resto, fica também a figura do DJ como herói do eletrônico, marginal por excelência, espécie de Quixote da nova linguagem.
E vale lembrar que é pródiga e frutífera a tradição da vaia. Pense no movimento modernista ou mesmo no tropicalismo. E para terminar, podemos citar o genial Tom Zé: vaia de bêbado não vale!



E-mail: palomino@uol.com.br


Gosta de house? Tem o mito Roger Sanchez nesta quinta na U-Turn. E o simpático after-hours do Pix, na madrugada de sábado, com o brother DJ JP, da loja inglesa Vinyl Junkies. Semana que vem: acompanhe Paul Oakenfold na Beija-Flor e na praia e os melhores babados da noite de São Paulo.


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