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NOITE ILUSTRADA ERIKA PALOMINO
Nação eletrônica chega ao mundão de Momo
NOITE Ilustrada está de volta e
seu principal assunto hoje é a
identidade musical brasileira. O
gancho, claro, é o Carnaval -e o
tema se prova longe de estar esgotado. Com a entrada da música
eletrônica nos trios elétricos baianos, o universo de house music,
tecno e quetais penetra agora em
território de proporções gigantescas e mais populares do que
nunca, justamente o mundo de
Momo, assunto seriíssimo no
país.
DESTA vez saímos mesmo do
mundinho (e quem lembra do
início dos anos 90, quando assim
ainda era chamado o palco das
pistas de dança?). Entramos, nós
da jovem nação eletrônica, na rota de colisão das culturas e viramos, de certa forma, o assunto de
todo um país. Quem não foi, ficou sabendo. Quem não estava lá
no trajeto Barra-Ondina viu pela
Band, acompanhou pelos jornais,
leu no Simão (que gostou) ou ouviu falar.
Afinal, pode uma manifestação
nacional e original como o Carnaval baiano receber a intervenção e a intromissão de uma música "inventada" e produzida fora?
Computadores e equipamentos
começariam a substituir percussionistas e instrumentistas locais?
Estaria caindo, por fim, um bastião de uma legítima música brasileira? Mas e o povão, gostou ou
não gostou?
NUM resumo rápido, foi assim: o
Olodum saiu na quinta com o DJ
Buga, no circuito alternativo, na
sexta na avenida Castro Alves
com o Ilê-aiyê, no trio Redbull/
Mundo Mix, coordenado pelo
agitador paulistano Beto Lago.
Daniela Mercury, uma das rainhas do axé, levou a Salvador os
DJs Mau Mau e Jon Carter, mais o
produtor musical Dudu Marote.
Competições entre os dois núcleos à parte (e nem é isso que cabe aqui), a principal discussão recaiu sobre o último grupo, pelo
item que chamou a atenção da
mídia: a vaia. Aliás, as vaias. Duas
vaias, em plena avenida. Mas vamos por partes. E você vai ver
aqui, tecnicamente, como a coisa
foi feita.
CONSTA que Daniela Mercury
teve a idéia de importar o eletrônico para o Carnaval baiano ao
tomar contato com a Love Parade, a maior parada de tecno do
mundo, anual, que reúne até 1,5
milhão de pessoas em Berlim.
Chamou Dudu Marote e a produtora Simone Ruotolo, que chamaram Mau Mau (outros DJs
convocados não puderam participar). Da banda dela, decidiu-se
que ficariam a percussão, a guitarra, o baixo; saíram o teclado e o
sopro. Num primeiro ensaio, a
cantora apareceu com o lançamento Electrix, um rack chamado Mo-Fx, com distorção, trêmulo, flange e delay.
Com a possibilidade de soltar
todos os efeitos ao mesmo tempo
e por meio de um botão, Dudu
Marote ia mandando o tempo
das batidas que Mau Mau fazia, e
os efeitos saíam sincronizados
com o som dos toca-discos.
""A gente começou a usar esse
efeito na voz dela de uma maneira bem radical e a mistura ficou
muito legal. Pra tentar explicar
melhor, a voz fica toda alterada, e
eu ia desenvolvendo os loopings
sincopados com a batida.
Enquanto isso, Dani cantava
doideiras como "Batmacumba" e
outras da Tropicália, até hinos do
Ilê-aiyê", conta Dudu.
"Da minha parte", diz Mau
Mau, "coloquei mais groove, próximo da batucada, para ela poder
encaixar a voz. Houve uma passagem de som e logo depois eu já
saí tocando. Fiquei de boca aberta: na primeira levada os músicos
já pegavam e saíam no tom certinho. Eles são muito bons."
O técnico Lonardi (responsável
pelo som de nove entre dez casas
noturnas de São Paulo) e o engenheiro de som Nivaldo completavam o staff.
"ESTÁVAMOS tocando pra um
povo na rua que estava animadíssimo pra dançar, mas frevo e axé.
Até aquele momento, o que mais
de moderno tinha ouvido era o
Harmonia do Samba, e olha lá. O
que eles tinham na ponta da língua era "cabelo raspadinho, estilo
Ronaldinho" e outras pérolas do
gênero", diz Dudu.
Ele diz que Mau Mau e Jon Carter "não fizeram concessões":
"Não tocaram poperô, tocaram
basicamente house. Depois de
quatro anos tendo que aguentar o
axé ameaçando nossos ouvidos,
fomos lá e enchemos o saco deles
durante cinco horas com música
eletrônica. Doce vingança."
E o que aconteceu? "O povo ficou literalmente boquiaberto. E
boquiaberto não significou aprovação ou reprovação. Significou
perplexidade. Alguns poucos
dançavam. Modernos em camarotes aprovavam. Mas o povo...
na boa, não tava entendendo",
conta o produtor.
Depois de uma hora e meia, Jon
Carter assumiu. O gerador deu
uma falhada e os toca-discos giraram sem sair som, durante uns
trinta segundos. Foi o suficiente
para afetar o início do set do inglês, que levou ainda uns quinze
minutos para acertar o que ia tocar. Foi o momento da primeira
vaia, mais ou menos duas horas
depois da saída. "Fomos em frente, mas Jon não teve momentos
brilhantes como o Mau no começo", admite Dudu Marote. Mau
Mau voltou e, logo de cara, a segunda vaia. Daniela Mercury respondeu com ironia e disparou:
"Faço Carnaval há 20 anos, posso
inventar alguma coisa? É uma
curtição, a rua é de todo mundo",
conforme relatou o repórter Pedro Alexandre Sanches nesta Folha.
"Já passei por algumas situações bem esquisitas no Carnaval,
quando era iniciante, mas como
esta nunca. Pensei que fosse ser
mais simples. Reagi às vaias porque você não pode deixar de enfrentar, no bom sentido. No Carnaval, o enfrentamento é contínuo", disse Daniela Mercury.
"DEPOIS que ela falou com as
pessoas, o povo terminou acatando, aplaudindo", diz Mau Mau,
queixando-se que, em São Paulo,
"só falaram da parte negativa".
Segundo ele, houve grandes momentos, com "Samba Magic", as
produções de Ben Sims e as do
próprio M4J, em especial "Capoeira" e o remix de "Stage Piano". Segundo o DJ, "era um mar
de gente que arrepiava. Depois da
segunda fala dela, depois da segunda vaia, eu fiquei tão emocionado que chorei. Era muita emoção junta. Você ia andando e ia
vendo a reação das pessoas: gente
que gritava, gente que ficava parada. Era como se eu estivesse entrando num continente novo".
MAU Mau diz que houve preconceito dos dois lados, desde do underground até daqueles que gostam de música baiana. "Tem
muita gente que é radical. Pega
um estilo musical e acha que só
aquilo é que é bom. Ah, você vai
tocar no Carnaval com a Daniela
Mercury, ah, então virou pop? Estou fazendo o meu trabalho. Já
estou acostumado com esse tipo
de coisa, desde os tempos do
Hell's Club.
"Gosto de experimentar, isso
sim é underground. Procuro o
inédito, e estou curtindo o que faço. Quem estiver aberto a isso, tudo bem, se não, tudo bem também. Ninguém é obrigado a gostar. Eu já estava fazendo isso no
estúdio e agora tive a oportunidade de fazer ao vivo. Não poderia
passar batido. Meu trabalho sempre foi esse, com reações positivas
ou negativas. Gosto de arriscar,de
fazer coisas novas. É melhor do
que pegar os 10 discos da parada e
tocar."
JÁ Beto Lago reclama que foi prejudicado. "O Dudu Marote copiou minha idéia e vendeu para a
Daniela Mercury. Tentei ainda
unir os dois projetos, mas não foi
possível. No primeiro dia, na
quinta, estávamos previstos para
sair às 22h. Saímos às 3h e chegamos ao final às 7h, sozinhos, meio
deprimente. Buga não se entendeu com o Olodum, foi péssimo.
Depois, acordei com o telefonema que me avisava que, por pressão dos outros blocos, não poderíamos mais desfilar ali, que deveríamos desfilar no circuito popular. Fomos então, na sexta, para a praça Castro Alves. Desta vez
rolou. Os meninos do Ilê-aiyê são
mais jovens. Ensaiamos e separamos os instrumentos por grupos.
Daí foi tudo redondo. Passamos
impunes, ninguém vaiou."
""PARA a gente aparecer e ter um
espaço lá fora tem que fazer alguma coisa diferente do que eles já
fazem. Talvez nem seja esse caminho que eu estou fazendo, talvez
seja outro. Mas eu estou tentando", disse Mau Mau.
Há especulações de que o trio
elétrico/eletrônico de Daniela
Mercury possa se apresentar em
julho na Love Parade alemã. Justamente tocando axé com house
e tecno? "Eu iria com o maior
prazer e com o maior orgulho",
diz o DJ.
OUVI algumas pessoas sobre o
assunto. "Acho que a música eletrônica deve se fundir com o que
der, seja underground ou não, cada um faz sua opção musical. Sou
a favor do trio e de sua massificação, até porque, daí, mais gente
pode vir a gostar de música com
mais qualidade", diz Marcão
Morcerf, DJ de Maceió radicado
em São Paulo.
"Daniela soube fazer direito e
não jogou os DJs na fogueira,
sempre anunciando quem eram e
quanto são importantes na cena
eletrônica. Devagar ela foi conquistando e os deixando trabalhar. O povo pulava a três metros
do chão. Já o trio da RedBull foi
um pouco deixado de lado. Seguraram a sua saída e consequentemente tudo foi mais difícil de assimilar.
"Por mais que houvesse gente
criticando (e colocando o dedo
pra baixo), mesmo assim existiu
uma integração: muitos turistas,
clubbers baianos e o povo dançavam juntos", contou Frajola, que
foi dono do finado clube Florestta, agora novamente em Salvador.
"SIM, houve vaias, mas ninguém
falou que houve muitos, muitos
aplausos. Era um trio aberto, sem
cordas, e nenhuma violência; o
povo tava animadíssimo. Achei a
iniciativa bacana, mostra uma
saída feliz para a decadência do
axé, que já é falado por aqui.
"Os DJs fizeram um crossover
das grooves sobre o que há de tribal no axé; quem sabe daí não
saia algo local? E olha, essas fusões já acontecem há muito entre
sons mais tribais e roots com os
grooves tecnológicos, mas sempre tem gente retrógrada e apegada às fórmulas rígidas reclamando", diz Claudio M., pesquisador
do núcleo Pragatecno, do eixo
Maceió-Salvador. Quer mais? Este ano não tocou só samba na
Banda de Ipanema, que estava
maior do que nunca no Rio. A
onda dos poposudos e poposudas (gíria de funkeiro pra quem
tem bunda grande) tomou conta
e o carro de som causou gritaria
quando tocou o set de funkão
clássico, com direito a voltmix e
tudo. Vários grupos de barbies
faziam as dancinhas do funk em
diversos pontos.
DE fato, é irreversível. Este Carnaval 2000 põe o eletrônico na roda. Beto Lago diz que vai voltar
no próximo Carnaval e que vai
lançar até disco com o seu Afro-tecno. Para provarmos que não
somos colonizados pela cultura
de pistas importada, só faltam
mesmo os DJs brasileiros à altura
dos DJs de Londres (especula-se
o cachê de Jon Carter tipo R$
8.000; já cheguei a ouvir R$ 15
mil). De resto, fica também a figura do DJ como herói do eletrônico, marginal por excelência, espécie de Quixote da nova linguagem.
E vale lembrar que é pródiga e
frutífera a tradição da vaia. Pense
no movimento modernista ou
mesmo no tropicalismo. E para
terminar, podemos citar o genial
Tom Zé: vaia de bêbado não vale!
E-mail: palomino@uol.com.br
Gosta de house? Tem o mito Roger Sanchez
nesta quinta na U-Turn. E o simpático after-hours do Pix, na madrugada de sábado, com
o brother DJ JP, da loja inglesa Vinyl Junkies.
Semana que vem: acompanhe Paul Oakenfold na Beija-Flor e na praia e os melhores
babados da noite de São Paulo.
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