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São Paulo, segunda-feira, 17 de março de 2003

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NELSON ASCHER

Depois de babel

Pronuncie em voz alta a palavra "li" e continue feito uma sirene; agora, sem interromper o "iii", levante e abaixe as sobrancelhas; se você está sentado, estique devagar os pés, fazendo sua voz acompanhá-los; finalmente, deixe o queixo cair na direção do tórax e logo voltar à posição original. Tente de novo.
É com instruções assim que meu manual básico de chinês ensina a vocalização correta dos quatro tons da língua, pois, na sua variante mais difundida, o mandarim, a palavra em questão e infinitas outras, geralmente monossilábicas, podem, se pronunciadas de acordo com cada uma das maneiras acima, ter sentidos diferentes. Depois de repetir durante dias tais exercícios (quase enlouquecendo todos em casa), constatei que essa dificuldade legendária do idioma tonal de Li Tai Po, Wang Wei e Tu Fu não era nem remotamente a pior.
Um tradutor norte-americano de poesia hispânica me contou que estudava o chinês havia sete anos e que, com mais sete, estaria pronto para lhe enfrentar a poesia. Entre o prognóstico otimista e a publicação de um volume traduzido por ele do poeta chinês contemporâneo Bei Dao, passaram-se 14 anos. Mas o tradutor pelo menos aprendeu a língua. Outro amigo que, quando tentava a sorte com o japonês, declarou certa vez, satisfeito, que havia alcançado o quinto nível do curso, ou seja, ele já podia pedir informações dentro de um elevador, jamais chegou à fluência necessária para dizer a um motorista de táxi aonde queria ir.
Apesar de o monolinguismo ser a regra geral, não faltam países, regiões ou cidades onde o plurilinguismo é comum. Na Europa, os países mais cosmopolitas são frequentemente os menores. Os holandeses consomem, além dos seus próprios, uma quantidade de livros ingleses por cabeça que é quase igual à consumida pelos britânicos. De sua língua, mais ou menos equidistante do inglês e do alemão, os linguistas dizem que se parece com a que seria falada na Inglaterra não fosse a influência dos celtas nativos e a conquista franco-normanda de 1066.
Assim, passeávamos uma noite, eu e uns argentinos e mexicanos, em Roterdã, quando fomos abordados por um mendigo local em holandês. Diante de nossa indiferença (por que gente do Terceiro Mundo deveria sustentar cidadãos do Primeiro?), ele tentou novamente, dessa vez em inglês. Sem mais sucesso do que antes, partiu para o francês e o alemão. Ao fim e ao cabo, após prestar atenção à nossa conversa, deixou-nos sem saída pedindo "una limosna" em bom espanhol.
Infelizmente, para os que não sejam mendigos holandeses, aprender línguas é penoso. Se bem que crianças até os oito ou nove anos de idade sejam capazes de dominar meia dúzia de idiomas, a partir da adolescência o cérebro como que se calcifica. Para quem se dedique a isso, é verdade que o aprendizado de cada língua adicional parece ser um pouco mais fácil: segundo os entendidos, só as primeiras dez é que são difíceis.
Cientistas canadenses mostraram, por meio de radiografias contrastadas, que, quando alguém bilíngue desde a infância fala suas línguas, ele utiliza os mesmos centros cerebrais, mas outros, por melhor que tenham aprendido, a partir da adolescência, uma segunda, usam para esta uma área diferente do cérebro. Esse aspecto neurológico é auspicioso, pois talvez tudo o que nos separa do chinês fluente, do árabe sem dificuldades ou do sânscrito impecável não seja mais que o implante indolor de um microchip encefálico.
Enquanto os admiráveis métodos novos não chegam, resta-nos padecer com professores, gramáticas, dicionários e fitas ou CD-ROMs, consolando-nos, no intervalo do café, com o exemplo heróico de poliglotas que nem disso dispunham.
Muitos dentre eles foram religiosos, sobretudo padres jesuítas, ou missionários protestantes. Quando os europeus começaram, há meio milênio, a entrar em contato com o restante do mundo, clérigos variados acompanharam os exploradores e comerciantes com o intuito de converter os povos recém-encontrados à sua fé. Independentemente do julgamento que a história lhes reserve, foram eles que primeiro desbravaram e mapearam a pluralidade linguística do planeta. A maioria (auxiliada sem que soubesse pelos microorganismos que levava consigo) contribuiu para o desaparecimento de culturas inteiras. Houve alguns, porém, que não apenas se interessaram pelas línguas nativas como ajudaram a preservar seu legado.
O padre José de Anchieta é um bom exemplo, mas o melhor foi o frei Bernardino de Sahagún (1500-1590), um religioso espanhol que, chegando ao México em 1529, poucos anos depois da conquista, aprendeu rapidamente a língua dos astecas e passou o resto de sua vida tentando entender sua cultura, religião, mitos, rituais, costumes, literatura etc. Graças a esse autêntico fundador da antropologia, o legado de toda uma civilização não se perdeu para a posteridade.
E, de todos os poliglotas que existiram, o mais notável foi o cardeal italiano Giuseppe Caspar Mezzofanti (1774-1849). Embora ninguém saiba exatamente quantos idiomas chegou a dominar, as estimativas dos historiadores andam ao redor de 40 línguas e 50 dialetos. Saber, no seu caso, significava também ler e escrever cada qual, porque, ao que consta, ele "arranhava" também outras tantas dezenas. Como é que ele o conseguiu? Tampouco se sabe. Mas, entre ressuscitar geneticamente um dinossauro ou colher algumas amostras do DNA dos ossos do cardeal para resolver esse mistério, eu não tenho dúvida alguma de qual seria minha escolha.


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