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NELSON ASCHER
Depois de babel
Pronuncie em voz alta a
palavra "li" e continue feito
uma sirene; agora, sem interromper o "iii", levante e abaixe as sobrancelhas; se você está sentado,
estique devagar os pés, fazendo
sua voz acompanhá-los; finalmente, deixe o queixo cair na direção do tórax e logo voltar à posição original. Tente de novo.
É com instruções assim que meu
manual básico de chinês ensina a
vocalização correta dos quatro
tons da língua, pois, na sua variante mais difundida, o mandarim, a palavra em questão e infinitas outras, geralmente monossilábicas, podem, se pronunciadas
de acordo com cada uma das maneiras acima, ter sentidos diferentes. Depois de repetir durante dias
tais exercícios (quase enlouquecendo todos em casa), constatei
que essa dificuldade legendária
do idioma tonal de Li Tai Po,
Wang Wei e Tu Fu não era nem
remotamente a pior.
Um tradutor norte-americano
de poesia hispânica me contou
que estudava o chinês havia sete
anos e que, com mais sete, estaria
pronto para lhe enfrentar a poesia. Entre o prognóstico otimista e
a publicação de um volume traduzido por ele do poeta chinês
contemporâneo Bei Dao, passaram-se 14 anos. Mas o tradutor
pelo menos aprendeu a língua.
Outro amigo que, quando tentava a sorte com o japonês, declarou
certa vez, satisfeito, que havia alcançado o quinto nível do curso,
ou seja, ele já podia pedir informações dentro de um elevador,
jamais chegou à fluência necessária para dizer a um motorista de
táxi aonde queria ir.
Apesar de o monolinguismo ser
a regra geral, não faltam países,
regiões ou cidades onde o plurilinguismo é comum. Na Europa,
os países mais cosmopolitas são
frequentemente os menores. Os
holandeses consomem, além dos
seus próprios, uma quantidade de
livros ingleses por cabeça que é
quase igual à consumida pelos
britânicos. De sua língua, mais ou
menos equidistante do inglês e do
alemão, os linguistas dizem que
se parece com a que seria falada
na Inglaterra não fosse a influência dos celtas nativos e a conquista franco-normanda de 1066.
Assim, passeávamos uma noite,
eu e uns argentinos e mexicanos,
em Roterdã, quando fomos abordados por um mendigo local em
holandês. Diante de nossa indiferença (por que gente do Terceiro
Mundo deveria sustentar cidadãos do Primeiro?), ele tentou novamente, dessa vez em inglês.
Sem mais sucesso do que antes,
partiu para o francês e o alemão.
Ao fim e ao cabo, após prestar
atenção à nossa conversa, deixou-nos sem saída pedindo "una
limosna" em bom espanhol.
Infelizmente, para os que não
sejam mendigos holandeses,
aprender línguas é penoso. Se
bem que crianças até os oito ou
nove anos de idade sejam capazes
de dominar meia dúzia de idiomas, a partir da adolescência o
cérebro como que se calcifica. Para quem se dedique a isso, é verdade que o aprendizado de cada
língua adicional parece ser um
pouco mais fácil: segundo os entendidos, só as primeiras dez é
que são difíceis.
Cientistas canadenses mostraram, por meio de radiografias
contrastadas, que, quando alguém bilíngue desde a infância
fala suas línguas, ele utiliza os
mesmos centros cerebrais, mas
outros, por melhor que tenham
aprendido, a partir da adolescência, uma segunda, usam para esta
uma área diferente do cérebro.
Esse aspecto neurológico é auspicioso, pois talvez tudo o que nos
separa do chinês fluente, do árabe
sem dificuldades ou do sânscrito
impecável não seja mais que o
implante indolor de um microchip encefálico.
Enquanto os admiráveis métodos novos não chegam, resta-nos
padecer com professores, gramáticas, dicionários e fitas ou CD-ROMs, consolando-nos, no intervalo do café, com o exemplo heróico de poliglotas que nem disso
dispunham.
Muitos dentre eles foram religiosos, sobretudo padres jesuítas,
ou missionários protestantes.
Quando os europeus começaram,
há meio milênio, a entrar em contato com o restante do mundo,
clérigos variados acompanharam
os exploradores e comerciantes
com o intuito de converter os povos recém-encontrados à sua fé.
Independentemente do julgamento que a história lhes reserve,
foram eles que primeiro desbravaram e mapearam a pluralidade
linguística do planeta. A maioria
(auxiliada sem que soubesse pelos
microorganismos que levava consigo) contribuiu para o desaparecimento de culturas inteiras.
Houve alguns, porém, que não
apenas se interessaram pelas línguas nativas como ajudaram a
preservar seu legado.
O padre José de Anchieta é um
bom exemplo, mas o melhor foi o
frei Bernardino de Sahagún
(1500-1590), um religioso espanhol que, chegando ao México em
1529, poucos anos depois da conquista, aprendeu rapidamente a
língua dos astecas e passou o resto
de sua vida tentando entender
sua cultura, religião, mitos, rituais, costumes, literatura etc.
Graças a esse autêntico fundador
da antropologia, o legado de toda
uma civilização não se perdeu para a posteridade.
E, de todos os poliglotas que
existiram, o mais notável foi o
cardeal italiano Giuseppe Caspar
Mezzofanti (1774-1849). Embora
ninguém saiba exatamente
quantos idiomas chegou a dominar, as estimativas dos historiadores andam ao redor de 40 línguas e 50 dialetos. Saber, no seu
caso, significava também ler e escrever cada qual, porque, ao que
consta, ele "arranhava" também
outras tantas dezenas. Como é
que ele o conseguiu? Tampouco se
sabe. Mas, entre ressuscitar geneticamente um dinossauro ou colher algumas amostras do DNA
dos ossos do cardeal para resolver
esse mistério, eu não tenho dúvida alguma de qual seria minha
escolha.
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