São Paulo, segunda-feira, 17 de abril de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Axé virou apelação e todo mundo foi atrás"

do enviado a Salvador

Leia a seguir a continuação da entrevista com Roberto Sant'Ana, em que ele fala dos males do mercado fonográfico e da supremacia da axé music.
(PAS)

Folha - Em 70 você mudou para o Rio por quê?
Roberto Sant'Ana -
A convite de André Midani, que dirigia a Philips, onde estavam Gil, Caetano, todos. Fui coordenador de produção e diretor artístico, de 75 e 81. André foi e é o grande homem do disco, um homem que ama a música e respeita o artista. Os diretores de gravadora de hoje não têm o nível dele. Não gostam de música, gostam de mercado. Não gostam de artista, gostam de produto.

Folha - Nesse setor, os líderes não se renovaram, e os antigos foram desaparecendo. É um processo irreversível?
Sant'Ana -
Não acho. Tem de mudar a política. Gravadora tem responsabilidade com a cultura musical, não pode ter produtos imediatistas. Você pode negar que o Brasil é cheio de talentos? O movimento pernambucano é melhor que o baiano, e a indústria não quer saber, porque precisa fazer hoje para vender amanhã.
Sabe quando isso vai mudar? No dia em que o governo parar de dar o incentivo do ICMS. Essa é uma lei que foi criada para beneficiar o disco produzido no Brasil, de artistas que dessem prejuízo à gravadora -os artistas davam prejuízo até o segundo, terceiro disco, é assim mesmo. Hoje foi estendido a todos os produtos.
De onde a gravadora vai tirar dinheiro para pagar jabá, que é o que matou tudo? Quem paga jabá é o próprio governo, com esses benefícios. Os discos são todos fabricados no Rio e em São Paulo, são mandados produtos semi-acabados para Manaus, onde são embalados. Aí vem "fabricado em Manaus" e não paga IPI. Nada é fabricado em Manaus. Havia toda uma política de manter o preço do disco a 10% do salário mínimo. Qual é o preço do disco na loja hoje? De 20 a 25% do salário mínimo. Por que tanto aumento, se é beneficiado pelo ICMS e pelo IPI? Quem vai comprar? Se tirar os incentivos, as empresas vão falir, mas deixa falir. Quem tem competência se estabelece.

Folha - Por que você e Elis Regina eram brigados?
Sant'Ana -
Elis morreu minha inimiga. Por eu ser baiano, ela achava que eu prestigiava os baianos e não prestigiava ela. Mas tenho tudo dela, adorava. Minha briga com ela teve a razão mais imbecil. Ela não podia brigar com Gal, Bethânia, sobrou para mim.
Já brigados, gravou um disco, logo após o show "Falso Brilhante", que havia sido o grande apogeu da carreira dela. Esperávamos um novo "Falso Brilhante", um disco alegre, festivo, e chegou um disco que era um enterro. Perguntamos se podíamos mexer, ela disse que em nada. Em um mês "Transversal do Tempo" já havia batido "Falso Brilhante", e os lojistas pediam reposição. Eu estava absolutamente errado.

Folha - Jair Rodrigues, que era próximo de Elis, deu a entender em entrevista à Folha que você o prejudicava na gravadora.
Sant'Ana -
Jair foi muito injusto e já me pediu desculpas. Somos amigos, dirigi vários shows para ele na Europa. Ele acha que eu prejudicava ele porque dava as músicas para Alcione e tal. Nunca tirei uma música de Jair, juro pela felicidade de meus filhos, que são muitos. Ele reconheceu. É um grande intérprete de samba, era o principal sambista da gravadora.

Folha - Por que você saiu da grande indústria nos anos 80?
Sant'Ana -
Saí porque queria montar meu próprio negócio e não me dava bem com a forma de agir de alguns diretores. Abri o selo Nova República com José Vicente Brizola, filho de Leonel Brizola. Cheguei a um circo em Ondina, em 85, e encontrei um cara cantando para 5.000 pessoas.
Comprei seu disco pronto, era Luiz Caldas. Com ele, sustentei a PolyGram com minha etiqueta por um ano e meio, quando a gravadora não estava vendendo nada. Hoje comemoram os 15 anos da axé music, consideram esse lançamento a data magna do axé.

Folha - Você inventou a axé music com Luiz Caldas?
Sant'Ana -
Não, não. Luiz é um grande músico, mas o axé depois tomou um caminho dúbio, de música sem qualidade. Nego apelou, "o de cima sobe, o de baixo desce", "a boca da garrafa", "na bundinha". Foi Daniela, foi Ivete, foi todo mundo atrás da apelação.
Daniela é uma cantora de excelente qualidade, mas tem um repertório de décima. Me dizem "mas como, se ela gravou música do seu filho?", digo que então meu filho foi para o escalão de décima categoria. A música baiana partiu para a putaria. Eles mesmos estão vendo que não dá pé.

Folha - A aparente indefinição ideológica dos tropicalistas é uma forma de ideologia conservadora? A axé music e sua defesa não são conservadoras?
Sant'Ana -
Não acho que seja indefinição. Conservadora também não concordo. Ideologia, sim, não conservadora. Caetano defende o axé, mas no Carnaval, que é o espaço dele. O que Jota Quest e Milton estão fazendo em cima de trio elétrico? Deviam ter vergonha. Só pra Contrariar e Leonardo no trio elétrico? Quando não era sucesso, as pessoas não iam, mas Caetano e Gil iam.

Folha - Que projeto você gostaria de fazer e não fez ainda?
Sant'Ana -
Hoje? Gostaria de fazer um disco com Marisa Monte e um com Paulinho da Viola. E gostaria de recuperar a obra de Capinan na tropicália. Mas ele é muito difícil, está ficando velho, chato.
Desisti para não me aborrecer com ele. Era um projetaço, um poeta de origem bem humilde, lá do interior da Bahia, que foi talvez o principal coordenador poético da tropicália, com Torquato Neto. Ele foi secretário de Cultura de Waldir Pires, teve a classe artística da Bahia toda contra ele.

Folha - Artistas da Bahia viram secretários e vereadores, artistas agradam políticos de cima dos trios elétricos. Não há uma promiscuidade nisso tudo?
Sant'Ana -
Não há promiscuidade, são todos próximos. O prefeito de Salvador é um folião. A TV Bahia tem cinco diretores que são donos de blocos. Maria Bethânia fez show no aniversário de 15 anos do axé a pedido de ACM. Fez um grande show com 39 graus de febre e agradeceu publicamente o convite do senador.
O que o governo da Bahia tem a ver se Daniela Mercury convida Arnaldo Faria de Sá para seu camarote? São amigos, vai saber. O cara está sob investigação, não está provado. Eu tenho parentes que são bandidos, o que posso fazer? Tenho um que está preso, quem fez o derrame de drogas no Carnaval foi ele. É sobrinho meu.



Texto Anterior: CD alenta ao suprimir vulgaridade baiana
Próximo Texto: Relâmpagos - João Gilberto Noll: Campos de algodão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.