São Paulo, sexta, 17 de abril de 1998

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Cozinha Italiana

NINA HORTA
especial para a Folha

A Companhia das Letras está lançando um dos livros de Elizabeth David, o terceiro, "Cozinha Italiana", e mal posso acreditar. A coisa que mais queria era ver essa mulher publicada aqui, mas achava que o dia não chegaria nunca, que havia muito chão a percorrer, muito livro de receitinha, antes que o público aceitasse essa escritora que foi a força mais influente na comida de pós-guerra européia.
"Cozinha Italiana" foi o pioneiro, o primeiro livro dirigido a cozinheiros amadores, num estilo coloquial e agradável, abrangendo uma gama grande de receitas de regiões da Itália e passando por cima de todos os tipos de preconceitos que haviam em relação à comida italiana. Foi fruto de uma pesquisa patrocinada, quando a escritora pôde correr as cozinhas da Itália, da Sicília a Milão.
Elizabeth David tinha humor e tinha talento. Sabia aproveitar as coisas boas da vida e escrevia como ninguém.
Passou por alguns maus bocados com seu italiano que não era lá estas coisas e sua capacidade limitada de comer seis pratos numa só refeição. Muitas vezes precisava passar primeiro por cinco especialidades italianas antes de chegar àquela que a interessava.
Lutou contra o tempo. Lutou contra as medidas incertas. Uma vez vagabundeou por Anacapri por três semanas antes que a cozinheira de um café se dignasse a considerar maduros uns pimentões que tinha para fazer uma conserva.
Esperou festas de porcos selvagens assados no espeto, comeu trufas na época certa e nos deu o primeiro livro que enxergou com olhos estrangeiros a magnífica cozinha italiana regional.
Tapioca e sagu
Vamos à história dela, dela que não gostava que contassem suas histórias...
O racionamento de comida na Inglaterra, durante a Segunda Guerra, começou em 1939 e só acabou em 1954. Os ingleses se acostumaram um pouco com a situação de carência e mergulharam de vez na tendência perversa de comida monótona e sem graça.
Esses 15 anos de sofrimento e privação prepararam o terreno para que Elizabeth David, a escritora-cozinheira, fizesse sucesso com seus livros. Ela estava recém-chegada de Alexandria e do Cairo, onde passara a guerra, e era apaixonada pela cozinha da França e do Mediterrâneo.
Não acreditou no que viu em sua própria terra. Que mesmice, que ruindade... Ela que era como uma musicista que se arrepia toda ao ouvir uma nota desafinada, achou que toda a sinfonia alimentar inglesa estava um desastre e resolveu dar um jeito na situação.
Escreveu "Mediterranean Food", num quartinho gelado de hotel inglês, morta de saudade do sol e das comidas coloridas e saborosas do Mediterrâneo. Aquilo foi como uma luz no túnel de vísceras, pudins gelatinosos, tapioca e sagu. O livro detonou lembranças antigas e fez sonhar com novidades. Elizabeth David usava palavras evocativas como azeitonas pretas, limão galego, azeite virgem, vinagre balsâmico, sardinhas fritas e charutinhos de folha de uva... Tão longe e tão perto.
Mas como é que essa inglesa de classe média alta se interessou por comida quando até conversar sobre o assunto não era de bom-tom?
Ela própria nos conta: "Na época não fui capaz de enxergar, mas foi por meio da comida normanda que primeiro aprendi a apreciar a comida francesa. Arrancada aos 16 anos de um internato inglês (para minha alegria), fui morar com uma família de classe média em Passy. Só algum tempo depois, já com perspectiva, é que percebi que a família Robertot, parisiense, dona de uma fazendinha na Normandia, era excepcionalmente gulosa e muito bem alimentada.
A cozinheira, uma mocinha chamada Leontine, trabalhava como um pau mandado da manhã à noite e não consigo entender como lhe sobrava ânimo para fazer pratos tão deliciosos.
Duas vezes por semana, de madrugada, com o rosto afogueado e coroado por uma magnífica massa de cabelos brancos (Mme Robertot) saía para as compras no Les Halles, o Mercado Central, onde comprava de tudo, inclusive as flores para o apartamento. Acho que só o leite e o pão vinham do bairro.
Chegava de volta lá pelas dez horas com duas sacolas pretas estourando de cheias em cada braço, bufando, suspirando, limpando o suor da testa e aparentemente na iminência de um derrame...
...Não acho que os Robertots gastassem mais do que podiam em comida, como se costuma suspeitar dos franceses. Com as pechinchas do Les Halles, com o vinho que chegava em tonéis de Bordeaux, o creme e a manteiga da fazenda normanda, a comida era adorável sem ser por demais elaborada. E principalmente, tinha consistência, era inteira e coordenada, tudo isso, devido, é claro, à cuidadosa compra de Madame".
Quando voltou à Inglaterra Elizabeth David estava mordida. "Esquecidos os professores da Sorbonne, os metros de Racine aprendidos de cor, as plantas das catedrais que jamais visitei e a saga dos últimos dias de Napoleão em Santa Helena. O que me marcou foi o gosto de uma espécie de comida diferente de tudo que eu provara até então. Desde aquela época tenho lutado para recuperar os dias perdidos nos quais eu estaria empregando melhor meu tempo se ficasse na cozinha observando Leontine - do que andando diligentemente por todos os museus e galerias de Paris."
E foi assim que começou a luta.
Muita gente pode reivindicar o privilégio de ter apresentado outras cozinhas que depois se infiltraram no dia a dia da cozinha inglesa. Mas, na verdade, foi só Elizabeth David que convenceu sua geração e outras que cozinha era coisa séria. Estudava uma receita nova com a mesma atenção apaixonada que os estudantes de faculdade dedicavam a um poema de Eliot.
Ninguém, antes ou depois dela, teve tal grau de afinação sensual com o assunto do qual tratava, a comida, nem uma linguagem tão clara.
Do lado do cozinheiro, observando e aprendendo, sentada à mesa, comendo e apreciando, sempre, ao escrever, esqueceu-se de si, de sua história e deu lugar de honra ao prato. Disciplinada, sempre se calou diante de um valor mais alto, a comida bem feita.
Ler um livro de Elizabeth David é viajar, cozinhar e comer. Tornou a Inglaterra membro da Comunidade Européia antes do tempo com armas como o alho, o azeite, o vinho e o tomate maduro...

Livro: Cozinha Italiana
Autor: Elizabeth David
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 32 (480 págs.)



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