São Paulo, quarta-feira, 17 de maio de 2006

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CARTAS DA EUROPA

Dom Machado

JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA

Certo dia, meu pai chegou ao pé de mim e aconselhou-me leitura necessária para a minha ilustração espiritual. Acontecia raramente. Mas, quando acontecia, ele acertava. Aconteceu com Machado de Assis e as "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Eu, um intelectual de 14 anos, com presunção e muita acne, namorava os ingleses havia vários anos e acreditava que, fora das ilhas britânicas, só havia mar e tédio e pouco mais. Enganava-me. Terminei "Brás Cubas" em estado de choque e voltei ao início. Mas o que era aquilo, meu Deus?
Era obra de gênio. Mas que gênio? Precisamente: de um gênio imoral. Não, imoral não. De um gênio amoral: sim, nós temos o nosso Eça, que praticamente ensinou a ler e escrever qualquer português que se preze. Mas a preocupação de Eça era uma preocupação normativa. A crítica feroz à sociedade portuguesa do século 19 e à decadência nacional que o fazia sofrer terrivelmente nunca abandonou a pena de José Maria.
Machado, não. Entendam. A sociedade brasileira habita as páginas dos seus romances, a começar em "Brás Cubas", e, sobretudo, na figura mansa de Lobo Neves. Mas Machado suplanta o tempo e toca o dedo da eternidade: não é por acaso que o narrador está morto e nos fala diretamente do outro lado. A morte é a única certeza desta vida. E só ela é capaz de cobrir toda a empresa humana com o manto terrível do vazio e da ironia e da fatuidade.
Lembro meu pai, e Machado, e Brás Cubas, ao ler a biografia que Daniel Piza escreveu, "Machado de Assis, um Gênio Brasileiro" (Imprensa Oficial, 415 págs.). Começa por ser objeto estético invulgar em obras do gênero: Piza reuniu fotografias, ilustrações, reproduções fidelíssimas de crônicas primevas e manuscritos do autor.
Mas a força de Piza, que era já visível nos seus ensaios (reunidos em "Questão de Gosto", Record, 390 págs.), está na forma audaz, e cosmopolita, como interpreta Machado. Exemplo? Piza pergunta, como o bardo, o que existe num nome. E procura desvendar, por detrás de cada um ("Capitu", "Brás", "Ezequiel"), um significado maior. O exercício é arriscado, sim, mas valioso: só um ingênuo acredita que, nas peças de Shakespeare, "Malvolio", ou "Prospero", ou "Ophelia", se chamam assim por acaso. Não chamam. Um escritor medíocre escolhe sem método. Um gênio, quando escolhe nomes, escolhe caráteres.
Mas Piza acerta também ao estabelecer os diálogos possíveis entre Machado e os autores da sua influência. É um truísmo afirmar que "Brás Cubas" deve muito a Sterne, desde logo na forma delirante como alguns capítulos são visualmente organizados, para não falar já da autoconsciência plena do narrador-defunto. E quem diz Sterne diz Swift, que Machado expressamente cita, juntamente com autores vários que fizeram sua leitura e sua escrita (Rafael Cariello escreveu matéria a respeito nesta Folha sobre os "bons plágios" de Machado). Mas Piza tem razão ao sublinhar a natureza amoral da sua literatura, ao contrário do que sucede com Swift, Sterne e, mais ainda, Henry Fielding, que desconfio ter sido influência séria para Machado. Se Saramago aposta em Diderot, eu aposto em Fielding. Leiam as aventuras de Joseph Andrews e depois conversamos.
Só mais uma coisa: ao ler a biografia, encontrei pela frente este pedaço de prosa que Machado escreveu em jornal menor quando tinha a minha idade. Transcrevo: "Se a velhice quer dizer cabelos brancos, se a mocidade quer dizer ilusões frescas, não sou moço nem velho. Realizo literalmente a expressão francesa: un homme entre deux âges. Estou tão longe da infância como da decrepitude; não anseio pelo futuro, mas também não choro o passado. Nisso, sou uma exceção dos outros homens que, de ordinário -diz um romancista-, passam a primeira metade da vida a desejar a segunda e a segunda a ter saudades da primeira".
A poucos dias dos meus 30, faço uma reverência ao autor e roubo esse retrato para pendurá-lo nas paredes da alma.


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