|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARTAS DA EUROPA
Dom Machado
JOÃO PEREIRA COUTINHO
COLUNISTA DA FOLHA
Certo dia, meu pai chegou
ao pé de mim e aconselhou-me leitura necessária para a minha ilustração espiritual. Acontecia raramente. Mas, quando
acontecia, ele acertava. Aconteceu
com Machado de Assis e as "Memórias Póstumas de Brás Cubas".
Eu, um intelectual de 14 anos, com
presunção e muita acne, namorava os ingleses havia vários anos e
acreditava que, fora das ilhas britânicas, só havia mar e tédio e
pouco mais. Enganava-me. Terminei "Brás Cubas" em estado de
choque e voltei ao início. Mas o
que era aquilo, meu Deus?
Era obra de gênio. Mas que gênio? Precisamente: de um gênio
imoral. Não, imoral não. De um
gênio amoral: sim, nós temos o
nosso Eça, que praticamente ensinou a ler e escrever qualquer português que se preze. Mas a preocupação de Eça era uma preocupação normativa. A crítica feroz à
sociedade portuguesa do século 19
e à decadência nacional que o fazia sofrer terrivelmente nunca
abandonou a pena de José Maria.
Machado, não. Entendam. A sociedade brasileira habita as páginas dos seus romances, a começar
em "Brás Cubas", e, sobretudo, na
figura mansa de Lobo Neves. Mas
Machado suplanta o tempo e toca
o dedo da eternidade: não é por
acaso que o narrador está morto e
nos fala diretamente do outro lado. A morte é a única certeza desta vida. E só ela é capaz de cobrir
toda a empresa humana com o
manto terrível do vazio e da ironia e da fatuidade.
Lembro meu pai, e Machado, e
Brás Cubas, ao ler a biografia que
Daniel Piza escreveu, "Machado
de Assis, um Gênio Brasileiro"
(Imprensa Oficial, 415 págs.). Começa por ser objeto estético invulgar em obras do gênero: Piza reuniu fotografias, ilustrações, reproduções fidelíssimas de crônicas
primevas e manuscritos do autor.
Mas a força de Piza, que era já
visível nos seus ensaios (reunidos
em "Questão de Gosto", Record,
390 págs.), está na forma audaz, e
cosmopolita, como interpreta Machado. Exemplo? Piza pergunta,
como o bardo, o que existe num
nome. E procura desvendar, por
detrás de cada um ("Capitu",
"Brás", "Ezequiel"), um significado maior. O exercício é arriscado,
sim, mas valioso: só um ingênuo
acredita que, nas peças de Shakespeare, "Malvolio", ou "Prospero",
ou "Ophelia", se chamam assim
por acaso. Não chamam. Um escritor medíocre escolhe sem método. Um gênio, quando escolhe nomes, escolhe caráteres.
Mas Piza acerta também ao estabelecer os diálogos possíveis entre Machado e os autores da sua
influência. É um truísmo afirmar
que "Brás Cubas" deve muito a
Sterne, desde logo na forma delirante como alguns capítulos são
visualmente organizados, para
não falar já da autoconsciência
plena do narrador-defunto. E
quem diz Sterne diz Swift, que
Machado expressamente cita, juntamente com autores vários que
fizeram sua leitura e sua escrita
(Rafael Cariello escreveu matéria
a respeito nesta Folha sobre os
"bons plágios" de Machado). Mas
Piza tem razão ao sublinhar a natureza amoral da sua literatura,
ao contrário do que sucede com
Swift, Sterne e, mais ainda, Henry
Fielding, que desconfio ter sido influência séria para Machado. Se
Saramago aposta em Diderot, eu
aposto em Fielding. Leiam as
aventuras de Joseph Andrews e
depois conversamos.
Só mais uma coisa: ao ler a biografia, encontrei pela frente este
pedaço de prosa que Machado escreveu em jornal menor quando
tinha a minha idade. Transcrevo:
"Se a velhice quer dizer cabelos
brancos, se a mocidade quer dizer
ilusões frescas, não sou moço nem
velho. Realizo literalmente a expressão francesa: un homme entre deux âges. Estou tão longe da
infância como da decrepitude;
não anseio pelo futuro, mas também não choro o passado. Nisso,
sou uma exceção dos outros homens que, de ordinário -diz um
romancista-, passam a primeira
metade da vida a desejar a segunda e a segunda a ter saudades da
primeira".
A poucos dias dos meus 30, faço
uma reverência ao autor e roubo
esse retrato para pendurá-lo nas
paredes da alma.
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Artes Plásticas: Para Tunga, a arte deve "atingir o sonho" Índice
|