São Paulo, quarta, 17 de junho de 1998

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Glass reage ao conservadorismo

Eder Chiodetto/Folha Imagem
O compositor Philip Glass, autor da trilha sonora do filme "Kundun"



Autor da trilha sonora de 'Kundun', novo filme de Scorsese, diiz que ainda se considera um compositor inovador


JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Philip Glass, 61, compositor norte-americano que, nos anos 70, introduziu na música o minimalismo, está de volta ao mercado discográfico com o lançamento da trilha sonora de "Kundun".
O filme, dirigido por Martin Scorsese e ainda inédito no Brasil, critica a China ao narrar os primeiros anos (1937-1959) da vida do Dalai Lama no Tibete.
O trabalho de Glass, espécie de poema sinfônico épico em 18 movimentos, chegou a ser indicado para o Oscar de melhor trilha original. Perdeu para "Titanic".
Eis os principais trechos de sua entrevista à Folha.

Folha - Pode haver algo essencialmente político na música?
Philip Glass -
A música em si não é nunca política. Mas ela pode assumir esse papel no teatro, na ópera ou num filme que tenha uma mensagem politizada. Já tive experiências nesse sentido, antes de compor a trilha de "Kundun". Em "Satyagraha" (ópera, 1980), que narra a vida de Ghandi, ou em "The Voyage" (ópera, 1992), sobre o imaginário do descobrimento da América, a música se moldou ao tema central, adquirindo impacto sobre as idéias políticas.
Folha - Há alguma relação entre esse "impacto" e o fato de a música ser estruturalmente avançada, pouco conformista?
Glass -
Sempre espero que a música possa ser compreendida assim. Em "Kundun", identifiquei-me com a problemática religiosa e social abordada. Estava claro também, para mim, que o filme era uma oportunidade de divulgar isso. A parte formal da música veio a partir dessa motivação.
Folha - Como foi seu trabalho com Scorsese? Não é frustrante compor uma trilha que necessita de "x" circunstâncias dramáticas com "y" durações?
Glass -
Nesse caso específico, isso não ocorreu. Comecei a compor antes que o filme fosse rodado. Utilizei o roteiro como utilizaria um libreto de ópera. Scorsese conheceu a trilha durante as filmagens. A montagem coincidiu com minhas decisões de encurtar ou prolongar trechos. Trabalhamos organicamente, o que foi bom, entre maio de 96 e outubro de 97.
Folha - A crítica musical achou que "Kundun", por sua sofisticação, mereceria o Oscar de melhor trilha, no lugar de "Titanic".
Glass -
Elogios à minha música foram feitos, e me senti premiado. Mas "Titanic" foi um empreendimento comercial de tamanho porte que dificilmente deixaria de levar esse Oscar também.
Folha - Sentiu-se um derrotado?
Glass -
Senti-me desde o início vitorioso, porque foi uma composição que me deixou feliz.
Folha - O conceito de vanguarda musical ainda teria sentido hoje?
Glass -
Há 20 anos se produziam experiências mais radicais. Não encontro mais o radicalismo dos anos 60 ou 70. A razão é, a meu ver, até simples. Nenhum público deixa de sucumbir a duas décadas de TV medíocre, como nos EUA. A comercialização excessiva esvaziou a cabeça das pessoas.
Folha - Suas composições mais antigas assustam então os jovens?
Glass -
Exatamente. Quando mostro a pessoas com 20 anos meu "Einstein on the Beach" (ópera, 1976), elas ficam perplexas. Não acreditam que se tenha ido tão longe naquela época. Estamos hoje atravessando um período de profundo conservadorismo estético.
Folha - O sr. também não seria hoje mais conservador?
Glass -
Sou um dos criadores de uma nova linguagem. Não preciso, a rigor, provar mais nada. Mesmo assim, sinto que estou sempre explorando novos territórios. O que me desespera é ver compositores, com 40 anos a menos que eu, que adotam uma linguagem conservadora quando poderiam estar tentando mudar o mundo.
Folha - Recentemente, um grupo de jovens compositores franceses disse que era o momento de uma "harmonia mais amigável", com a reintrodução da melodia.
Glass -
É o que está ocorrendo. O problema é que essas "novas idéias" chegam com um atraso de 25 anos. Há uma procura pela aceitação. No início de minha carreira, fui vilipendiado. Estava à frente do consenso musical.
Folha - Em qual direção a música contemporânea está rumando?
Glass -
Há fenômenos novos. Primeiro, o impacto das tecnologias recentes. Eu e Bob Wilson estamos trabalhando, por exemplo, numa animação tridimensional. Há ainda uma integração entre criadores de várias linguagens num mesmo espetáculo. Há, por fim, compositores que trabalham nas fronteiras de diversos gêneros musicais, como o pop ou o jazz.
Folha - Seu público não mudou nesses 25 anos, daqueles que gostavam de world music (o nome ainda não existia) para os que gostam de música de concerto?
Glass -
É verdade. Mas é igualmente preciso, para pessoas como eu, fugir um pouco das expectativas. Nos anos 70, se eu dissesse para alguém que fazia música de vanguarda, essa pessoa saberia, com 90% de chances, do que se tratava. Hoje, é difícil saber o que determinado compositor está fazendo quando ele utiliza um termo para se qualificar.
Folha - Mas qual o peso, nesse processo, do mercado?
Glass -
Há algo de perigoso acontecendo. Com a força do marketing, o embrulho se tornou mais importante que o produto.



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