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CONTARDO CALLIGARIS
Vidas em quadrinhos
No cruzamento da rua 50
com a Broadway (esquina
noroeste), em Manhattan, quando o clima permite, aparecem três
bancas. Uma vende fruta, outra,
cachorro-quente, e a terceira é
mais complexa.
Há um estrado com telas verticais para expor revistas de histórias em quadrinhos da Marvel
Comics. São exemplares dos últimos anos, oferecidos por US$
3,50: "Hulk", "Spider-Man",
"Captain America", "Daredevil",
"Batman", "X-Men" e por aí vai.
E, na continuação do estrado, há
um tabuleiro de xadrez. Por 25
centavos (de dólar), você pode
sentar numa das duas cadeiras e
esperar que alguém se instale na
sua frente para começar uma
partida.
Não consigo me concentrar no
meio da multidão de Times Square. Mas acho engraçado jogar xadrez na sombra, literalmente, das
HQs da Marvel.
É uma espécie de metáfora da
tendência dominante da narrativa popular contemporânea. Há
super-heróis e vilões com aptidões
e traços de caráter constantes e
férreos como as regras que movimentam as peças no tabuleiro. E
essas personagens se engajam em
aventuras que são, a cada vez, um
pouco diferentes, mas que fundamentalmente são iniciadas e acabam sempre de um jeito semelhante, repetindo-se como partidas de um mesmo jogo. Como o
rei no xadrez, o protagonista
morre, mas sobra-lhe vida suficiente para se erguer de novo e recomeçar igual na próxima. Ressalva: a combinatória das narrativas atuais é mais simples e limitada do que o jogo de xadrez.
Um dos maiores historiadores
da arte do século 20, Erwin Panovsky, escreveu, em 1934, o ensaio "Style and Medium in the
Motion Pictures" (Estilo e Meio
no Cinema; republicado em
"Three Essays on Style", MIT
Press). Panovsky mostrava que o
cinema não é herdeiro do teatro:
desde o começo, deve sua maneira de narrar (cortando, mudando
de plano, deslocando a câmara)
às histórias em quadrinhos.
Na passagem de um conto para
a tela, a fase intermediária não é
a transformação da história em
diálogos, mas sua adaptação para "graphic novel", história em
quadrinhos. O tratamento cinematográfico de uma narração, segundo Panovsky, não é uma peça
na espera de ser montada: são
quadrinhos na espera de serem
desenhados.
Quem não puder ler o texto de
Panovsky assista a "Hulk" de Ang
Lee, em que é (maravilhosamente) evidente o parentesco entre a
montagem cinematográfica e o
estilo gráfico dos quadrinhos.
Ora, a intuição de Panovsky fica, hoje, confirmada não só em
matéria de estilo.
As histórias em quadrinhos, que
pareciam perder seus leitores nos
anos 60 e 70, triunfam nas telas
de cinema. Nesse segundo sopro
de vida, os quadrinhos contribuem bastante para impor ao cinema outra modalidade narrativa que lhes é essencial: a sequência de aventuras que manifestam
e confirmam as aptidões, boas ou
ruins, dos protagonistas.
Nessa perspectiva, opõem-se
dois modelos narrativos. Há a
história que acontece uma vez e
pronto. E há a série tipo revistinha que, como o seriado televisivo, propõe regularmente novas
peripécias de nosso herói e de seus
inimigos.
Imagine que Umberto Eco, encorajado pelo sucesso de "O Nome
da Rosa", escrevesse um "Nome
da Rosa 2" ou mais. A série não
seria o aprofundamento de uma
história que agita um caldeirão
de paixões humanas, da intolerância à sede de poder, passando
pela luxúria etc. Ela seria, inevitavelmente, a composição e a confirmação progressivas da personagem de Guilherme de Baskerville, o frade detetive.
É banal afirmar que o modelo
da série ou da revistinha é preferido por narrativas de segunda divisão: quem não sabe agitar a
complexidade da realidade humana optaria por compor um
protagonista com o qual fosse desejável identificar-se e, com ele,
repetidamente, seduziria seus leitores. Ganância da indústria cultural, não é?
Mas resta entender qual é a razão do sucesso do modelo da revistinha, seja ele próprio da segunda divisão ou não. O que nos
torna, em massa, bom público para as séries? Por que gostamos de
reencontrar, mais e mais vezes, os
super-heróis da Marvel Comics,
James Bond, Indiana Jones, Lara
Croft, Crocodilo Dundee e Freddy
Kruger?
O fenômeno é provavelmente
uma consequência da fraqueza
subjetiva moderna. A questão de
quem somos e a que viemos está
sempre em suspenso: depende do
olhar dos outros, que nada garante. Nessa incerteza permanente,
por que encarar abismos enigmáticos do drama humano?
Melhor sonhar com heróis que
voltam sempre iguais a si mesmos. Afinal, tudo seria mais fácil
se, em nossas vidas, tivéssemos a
extraordinária e repetida consistência das personagens dos quadrinhos.
PS: Os investidores que, desde
2000, perderam feio na crise de
Wall Street deveriam ter consultado um crítico da cultura.
Aprenderiam que nunca é errado
investir na satisfação das necessidades impostas pelas fraquezas
de nosso narcisismo.
De fato, quem, três anos atrás,
comprou ações da Mattel (fabricante da Barbie) dobrou seu capital, enquanto o mercado desmoronava. E quem comprou ações
da Marvel Comics triplicou seus
haveres.
ccalligari@uol.com.br
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