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RODAPÉ
Instalações e contaminações poéticas
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Poemas visuais como os de
"Tortografia", de Eliana Borges e Ricardo Corona, estão para a
literatura como as instalações estão para as artes plásticas. Em ambos, temos uma técnica que parece negar a "essência" de sua linguagem, sendo contaminada por
outras modalidades de arte até
um ponto em que já não distinguimos qualquer delimitação
(pense-se, por exemplo, nos poemas-objeto de Joan Brossa).
E tanto a poesia visual quanto as
instalações enfrentam resistência
em boa parte do público: o fato de
solicitarem uma "explicação" exterior ao objeto artístico (como
nas instalações de Sol LeWitt, em
que as instruções de montagem
são parte integrante da obra) provaria sua artificialidade.
A permanência desse preconceito só se justifica pelo fato de as
linguagens da literatura, da música, da pintura etc. estarem tão entranhadas em nossa cultura que
parecem se equiparar às línguas
naturais.
Nada mais estranho, porém, do
que esse artefato que denominamos "arte". Vem daí uma das virtudes das composições híbridas:
restaurar o sentido perturbador
da invenção artística, que assinala
o lugar de toda linguagem como
segunda natureza.
Não por acaso, nosso último
movimento de vanguarda foi a
poesia concreta, cuja proposta era
explorar a dimensão "verbivocovisual" da palavra. E "Tortografia" é, desde o título (uma expressão de Augusto de Campos para
descrever a poesia de Cummings), tributário dos concretos.
Alguns poemas do livro seguem
a idéia concretista de decompor a
sintaxe para realçar o timbre dos
fonemas ou de dispor as palavras
de forma circular, reproduzindo
espacialmente seu sentido.
Sendo, porém, fruto da trajetória da artista plástica Eliana Borges e do poeta Ricardo Corona,
"Tortografia" traz dois elementos
que injetam uma dimensão sensorial no cerebralismo da produção concreta: o uso do corpo como suporte da palavra e o recurso
da caligrafia como escrita que traz
vestígios da presença física do artista.
Assim, em "Deusconhecido", a
sobreposição dessa palavra manuscrita em páginas transparentes transtorna a leitura e materializa o tema pascaliano do Deus escondido. E em "Boca Maldita"
(referência a um ponto de encontro e maledicência em Curitiba,
cidade em que os autores moram), a radiografia de um maxilar
é atravessada por um verso sarcástico segundo o qual "língua má
não cria fungo".
Na série "Guardiões", momento
mais impactante do livro, blocos
de anotações são percorridos pela
carcaça de uma lagartixa alada
-atualização das Quimeras do
imaginário sobre o Novo Mundo,
revelando as fontes neobarrocas
dessa poética.
Mas a síntese de "Tortografia" é
o poema "Avalanche": sobre as
fotos de um braço tatuado (o corpo como suporte último da escrita) e de uma pedra (ícone drummondiano da poesia modernista),
sobrepõem-se encartes em que, a
partir do signo "stein" ("pedra",
em alemão, remetendo ainda à
poeta Gertrude Stein), lêem-se os
nomes do físico "Einstein", do cineasta "Eisenstein" e a palavra
"stones" ("pedras", em inglês,
mas também uma referência aos
Rolling Stones que não é estranha
ao trabalho de Ricardo Corona
como compositor).
Tortografia
Autores: Eliana Borges e Ricardo Corona
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 30 (64 págs.)
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