São Paulo, sábado, 17 de julho de 2004

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RODAPÉ

Instalações e contaminações poéticas

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Poemas visuais como os de "Tortografia", de Eliana Borges e Ricardo Corona, estão para a literatura como as instalações estão para as artes plásticas. Em ambos, temos uma técnica que parece negar a "essência" de sua linguagem, sendo contaminada por outras modalidades de arte até um ponto em que já não distinguimos qualquer delimitação (pense-se, por exemplo, nos poemas-objeto de Joan Brossa).
E tanto a poesia visual quanto as instalações enfrentam resistência em boa parte do público: o fato de solicitarem uma "explicação" exterior ao objeto artístico (como nas instalações de Sol LeWitt, em que as instruções de montagem são parte integrante da obra) provaria sua artificialidade.
A permanência desse preconceito só se justifica pelo fato de as linguagens da literatura, da música, da pintura etc. estarem tão entranhadas em nossa cultura que parecem se equiparar às línguas naturais.
Nada mais estranho, porém, do que esse artefato que denominamos "arte". Vem daí uma das virtudes das composições híbridas: restaurar o sentido perturbador da invenção artística, que assinala o lugar de toda linguagem como segunda natureza.
Não por acaso, nosso último movimento de vanguarda foi a poesia concreta, cuja proposta era explorar a dimensão "verbivocovisual" da palavra. E "Tortografia" é, desde o título (uma expressão de Augusto de Campos para descrever a poesia de Cummings), tributário dos concretos.
Alguns poemas do livro seguem a idéia concretista de decompor a sintaxe para realçar o timbre dos fonemas ou de dispor as palavras de forma circular, reproduzindo espacialmente seu sentido.
Sendo, porém, fruto da trajetória da artista plástica Eliana Borges e do poeta Ricardo Corona, "Tortografia" traz dois elementos que injetam uma dimensão sensorial no cerebralismo da produção concreta: o uso do corpo como suporte da palavra e o recurso da caligrafia como escrita que traz vestígios da presença física do artista.
Assim, em "Deusconhecido", a sobreposição dessa palavra manuscrita em páginas transparentes transtorna a leitura e materializa o tema pascaliano do Deus escondido. E em "Boca Maldita" (referência a um ponto de encontro e maledicência em Curitiba, cidade em que os autores moram), a radiografia de um maxilar é atravessada por um verso sarcástico segundo o qual "língua má não cria fungo".
Na série "Guardiões", momento mais impactante do livro, blocos de anotações são percorridos pela carcaça de uma lagartixa alada -atualização das Quimeras do imaginário sobre o Novo Mundo, revelando as fontes neobarrocas dessa poética.
Mas a síntese de "Tortografia" é o poema "Avalanche": sobre as fotos de um braço tatuado (o corpo como suporte último da escrita) e de uma pedra (ícone drummondiano da poesia modernista), sobrepõem-se encartes em que, a partir do signo "stein" ("pedra", em alemão, remetendo ainda à poeta Gertrude Stein), lêem-se os nomes do físico "Einstein", do cineasta "Eisenstein" e a palavra "stones" ("pedras", em inglês, mas também uma referência aos Rolling Stones que não é estranha ao trabalho de Ricardo Corona como compositor).


Tortografia
   
Autores: Eliana Borges e Ricardo Corona
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 30 (64 págs.)



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