São Paulo, quinta-feira, 17 de julho de 2008

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NINA HORTA

Perdida numa noite escura


Eu descia e deixava que o escritório me achasse. Não sem antes sentir o cheiro do churrasquinho grego

MINHA SÓCIA , Andréa, se localiza no tempo como se fosse a dona dele. Sabe o dia e o ano de uma festa, há quanto tempo isto ou aquilo. Quase não haveria necessidade de computador ou arquivos. Da minha parte, não seria exagerado dizer que não sei, sem muito esforço, em que dia e mês estamos.
Sei que numa tal casa de cliente, que não imagino onde nem quando, tinha uma mulher bonita de cabelos loiros, com a raiz mais escura, que o marido era mais velho e que passou zoando pela sala, de terno, arrumando a gravata, e que foi para a cozinha comer o macarrão dos empregados.
No meio dos livros, tinha uma edição de "Juca e Chico" em alemão. É um tipo de memória divertida, mas, além de só prestar atenção nos lugares, não imagino onde sejam. Meu pai tinha um escritório no centro, na rua Boa Vista. Eu descia num ponto de ônibus na praça do Patriarca e deixava que o escritório me achasse. Não sem antes sentir os cheiros do churrasquinho grego, das salsichas cozinhando nas Lojas Americanas, talvez da coalhada com broa de fubá da Campo Belo e, se quisesse me perder mesmo, por gosto, poderia ir parar no Mappin e comprar um batonzinho claro ou tomar um lanche e ouvir violinos.
Muita gente me pede memórias de comida, um mapa de comidas.
Teria que ser afetivo, espraiado, apontando para um lado, quando é para o outro, cheio de surpresas e de ruas sem saída. Para pessoas assim, confusas, não há uma memória que flua docemente e nos faça lembrar conforme as coisas foram acontecendo.
Não, são flashes daqui e dali, em ordem nada cronológica, a alcachofra antes do alho no pão, o lambari frito depois da terrine de foie, as iguanas junto do biju de coco, bibocas de tacacá, tudo um pouco dolorido, incapaz de achar seu eixo, memórias carregadas de emoções que fazem lembrar o ocorrido, a comida, o lugar, o choro, o gosto, a alegria, mas desconexos, perdidos, entroncando-se, fazendo curvas, labirintos.
Castanhas assadas na escadaria da igreja (lembro que eram ruins, pois não era o mês das castanhas. Qual é o mês das castanhas? Minha sócia sabe).
Melancia cortada nas ruas adjacentes à 25 de março... Coxinhas de galinha debaixo das abóbadas douradas da Colombo, um pirulito de mel na feirinha pobre, uma maçã azeda no pé, uma lasanha feita pela cunhada e pelo irmão. Uma vitela surpreendentemente boa no velho centro de São Paulo, tudo sem endereço.
É bom se perder nos arredores de Oxford, perto de Londres, e achar um pub destes que não têm absolutamente cara de turismo, mas é totalmente turístico. O táxi que nos levava parou na porta, e foi grande o alvoroço no pub, queriam que ele saísse de lá à força, pois perderia o tom bucólico, sugeriria que motoristas de táxi freqüentavam o lugar.
Gostei de ver que o homem foi firme, apontou seus direitos e lá ficou, sentado à mesa, com minha filha e eu. Sugeriu um ploughmans, um sanduíche enorme de queijo roquefort muito salgado e cerveja quente.
E me lembro da cara rosada do homenzarrão, da história de vida dele, e eu pensando, se comer esse queijo todo, vou ter um derrame. E minha filha saiu para dar uma espiada nos arredores e não voltava nunca. E o homem me contou que tinha um barco bonito, que adorava o rio, e fui falando qualquer coisa. E a filha não voltava, o repertório foi ficando curto, nem culpa do homem nem minha. Aprendi a pagar num pub, é diferente, e dei conta do sanduíche e não morri.
O que me deixa muito feliz nesta confusão toda, de me perder na vida, é a dificuldade que vão ter para diagnosticar o meu Alzheimer. "Mas ela já é assim desde os dez anos, doutor!" E sairei pela porta errada, altiva.

ninahorta@uol.com.br


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