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RESENHA DA SEMANA
É tudo aparência
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Por que um escritor de mais
de 80 anos, consagrado com o
Prêmio Nobel há mais de 20
anos, autor de mais de uma dezena de romances celebrados
em todo o mundo e que tratam,
em geral com muito humor, da
condição não muito feliz do
homem moderno sob a superfície do capitalismo glorioso,
resolve escrever uma novela
em que absolutamente tudo
tem a ver com as aparências?
Já no início de "Presença de
Mulher" ("The Actual"), o
americano de origem judaica
Saul Bellow, 84, dá a entender
que vivemos numa sociedade
psicanalítica e que ninguém
mais precisa comprovar que
"um ato falho leva a pessoa ao
maroto id". Tornou-se um lugar-comum entender as aparências como representações
de um substrato inconsciente,
procurar as explicações sempre por trás das manifestações.
E isso tanto mais conforme
esse mundo foi, em contrapartida, multiplicando as aparências, reduzindo-se muitas vezes
a simples aparência (sobretudo
quando se trata do modelo do
capitalismo publicitário americano), o que só reforçou, nem
que tenha sido por reação e
num círculo vicioso, a suspeita
de que deve sempre haver alguma coisa por trás. Repetir hoje
que quando alguém diz "x" é
porque seu inconsciente quis
dizer "y" é um clichê como
qualquer outro.
O que salta aos olhos nesse
pequeno romance é a tentativa
de escapar a esse vício pela via
de uma ironia discreta mas implacável. Já ao constatar que esse sistema de explicação das
aparências pelo que elas escondem tornou-se o óbvio ululante (mera aparência), o autor
põe, ironicamente, essa obviedade em questão: o protagonista e narrador é um "judeu com
feições de chinês", criado num
orfanato sem ser órfão, enquanto a mãe, uma hipocondríaca, passa a vida num spa.
Bellow leva ao cúmulo risível
o lugar-comum desse platonismo generalizado em que nada
é o que parece ser.
Sexagenários, mas decididos
a não esmorecer até o último
suspiro, os personagens desta
novela se sentem de repente
desconfortáveis nesse mundo
de aparências encobrindo verdades, onde sempre viveram
sem nenhum questionamento.
Aproximando-se do final da vida, o narrador chega à conclusão paradoxal de que toda a
história pessoal dos indivíduos
não passa de um exílio de si
mesmos, e tenta por fim resgatar alguma "verdade anterior",
voltando a um amor de juventude mantido por 40 anos em
estado platônico.
Só que, quando diz que a história pessoal é exílio de si mesmo, o narrador de Bellow reduz a própria vida a mera aparência. Há algo de paradoxal e
absurdo nesse platonismo irrestrito, que o autor desenvolve
com humor e graça: como se,
de tanto procurar uma essência
sob as aparências, nem mais a
vida fosse real, e o "eu" tivesse
se tornado um espectro inatingível, porque só o fato de existir, de ter uma experiência de
vida, já afasta os indivíduos de
quem "realmente" são ou
eram; como se pudesse haver
alguém antes da experiência.
Interessado pela perspicácia
que o narrador, um comerciante especialista em antiguidades orientais, demonstra em
sua observação dos convivas
durante um jantar em Chicago,
um velho milionário aposentado o convoca como "consultor". E quando, mais tarde, decide comprar um apartamento
suntuoso, pede a uma decoradora uma avaliação dos móveis
que o casal de proprietários
pretende empurrar junto com
o imóvel.
Por uma curiosa coincidência, a decoradora vai se revelar
a verdadeira ("the actual") paixão de juventude do narrador,
e a compra do apartamento pelo milionário servirá de pretexto para o reencontro dos dois.
Paralelamente, os proprietários do apartamento são um estranho casal: a mulher, anos
antes, havia convencido o
amante a matar o marido. Depois do crime malsucedido, do
escândalo noticiado pelos jornais e de passar anos na cadeia,
terminou perdoada pelo marido, com quem voltou a viver, e
agora só pensa em abrir, com o
dinheiro dos móveis, um negócio dos mais inverossímeis para ressarcir o ex-amante das
mazelas que lhe infligira ao incitá-lo ao atentado.
As aparências (o que escondem ou revelam) sempre foram a matéria-prima de qualquer romancista. Saul Bellow
não pretende romper com isso
ao narrar a história de homens
e mulheres aproximando-se do
final da vida diante do ridículo
de uma sociedade estruturada
pelo marketing e outras estratégias de manipulação.
Mas sua ironia é tanta, e ao
mesmo tempo tão fina e comovente (compõe essa realidade
absurda com a discrição de
quem pretende manter as aparências), que ao final não deixa
outra opção ao protagonista
senão quebrar o imobilismo de
seu amor platônico com um
pedido de casamento à amada,
só que diante de uma cova
aberta, no cemitério.
Avaliação:
Livro: Presença de Mulher
Autor: Saul Bellow
Tradução: Lia Wyler
Lançamento: Rocco
Quanto: R$ 16 (128 págs.)
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