São Paulo, Sábado, 17 de Julho de 1999
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RESENHA DA SEMANA
É tudo aparência

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Por que um escritor de mais de 80 anos, consagrado com o Prêmio Nobel há mais de 20 anos, autor de mais de uma dezena de romances celebrados em todo o mundo e que tratam, em geral com muito humor, da condição não muito feliz do homem moderno sob a superfície do capitalismo glorioso, resolve escrever uma novela em que absolutamente tudo tem a ver com as aparências?
Já no início de "Presença de Mulher" ("The Actual"), o americano de origem judaica Saul Bellow, 84, dá a entender que vivemos numa sociedade psicanalítica e que ninguém mais precisa comprovar que "um ato falho leva a pessoa ao maroto id". Tornou-se um lugar-comum entender as aparências como representações de um substrato inconsciente, procurar as explicações sempre por trás das manifestações.
E isso tanto mais conforme esse mundo foi, em contrapartida, multiplicando as aparências, reduzindo-se muitas vezes a simples aparência (sobretudo quando se trata do modelo do capitalismo publicitário americano), o que só reforçou, nem que tenha sido por reação e num círculo vicioso, a suspeita de que deve sempre haver alguma coisa por trás. Repetir hoje que quando alguém diz "x" é porque seu inconsciente quis dizer "y" é um clichê como qualquer outro.
O que salta aos olhos nesse pequeno romance é a tentativa de escapar a esse vício pela via de uma ironia discreta mas implacável. Já ao constatar que esse sistema de explicação das aparências pelo que elas escondem tornou-se o óbvio ululante (mera aparência), o autor põe, ironicamente, essa obviedade em questão: o protagonista e narrador é um "judeu com feições de chinês", criado num orfanato sem ser órfão, enquanto a mãe, uma hipocondríaca, passa a vida num spa.
Bellow leva ao cúmulo risível o lugar-comum desse platonismo generalizado em que nada é o que parece ser.
Sexagenários, mas decididos a não esmorecer até o último suspiro, os personagens desta novela se sentem de repente desconfortáveis nesse mundo de aparências encobrindo verdades, onde sempre viveram sem nenhum questionamento. Aproximando-se do final da vida, o narrador chega à conclusão paradoxal de que toda a história pessoal dos indivíduos não passa de um exílio de si mesmos, e tenta por fim resgatar alguma "verdade anterior", voltando a um amor de juventude mantido por 40 anos em estado platônico.
Só que, quando diz que a história pessoal é exílio de si mesmo, o narrador de Bellow reduz a própria vida a mera aparência. Há algo de paradoxal e absurdo nesse platonismo irrestrito, que o autor desenvolve com humor e graça: como se, de tanto procurar uma essência sob as aparências, nem mais a vida fosse real, e o "eu" tivesse se tornado um espectro inatingível, porque só o fato de existir, de ter uma experiência de vida, já afasta os indivíduos de quem "realmente" são ou eram; como se pudesse haver alguém antes da experiência.
Interessado pela perspicácia que o narrador, um comerciante especialista em antiguidades orientais, demonstra em sua observação dos convivas durante um jantar em Chicago, um velho milionário aposentado o convoca como "consultor". E quando, mais tarde, decide comprar um apartamento suntuoso, pede a uma decoradora uma avaliação dos móveis que o casal de proprietários pretende empurrar junto com o imóvel.
Por uma curiosa coincidência, a decoradora vai se revelar a verdadeira ("the actual") paixão de juventude do narrador, e a compra do apartamento pelo milionário servirá de pretexto para o reencontro dos dois.
Paralelamente, os proprietários do apartamento são um estranho casal: a mulher, anos antes, havia convencido o amante a matar o marido. Depois do crime malsucedido, do escândalo noticiado pelos jornais e de passar anos na cadeia, terminou perdoada pelo marido, com quem voltou a viver, e agora só pensa em abrir, com o dinheiro dos móveis, um negócio dos mais inverossímeis para ressarcir o ex-amante das mazelas que lhe infligira ao incitá-lo ao atentado.
As aparências (o que escondem ou revelam) sempre foram a matéria-prima de qualquer romancista. Saul Bellow não pretende romper com isso ao narrar a história de homens e mulheres aproximando-se do final da vida diante do ridículo de uma sociedade estruturada pelo marketing e outras estratégias de manipulação.
Mas sua ironia é tanta, e ao mesmo tempo tão fina e comovente (compõe essa realidade absurda com a discrição de quem pretende manter as aparências), que ao final não deixa outra opção ao protagonista senão quebrar o imobilismo de seu amor platônico com um pedido de casamento à amada, só que diante de uma cova aberta, no cemitério.


Avaliação:    


Livro: Presença de Mulher Autor: Saul Bellow Tradução: Lia Wyler Lançamento: Rocco Quanto: R$ 16 (128 págs.)

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