São Paulo, sexta-feira, 17 de agosto de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Intenção didática reduz contundência da obra

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Se o "Brás Cubas" de Júlio Bressane (1985) só pode ser compreendido por quem já conhece o livro de Machado de Assis, o "Memórias Póstumas" de André Klotzel parece ter sido concebido para os que não o leram.
Seria um exagero e uma injustiça dizer que se trata meramente de um resumo ilustrado do romance, mas o fato é que a intenção didática é o que mais salta aos olhos nessa nova adaptação.
Amparado numa produção impecável -em que se destaca a primorosa direção de arte de Adrian Cooper-, Klotzel realizou um filme leve, elegante, ocasionalmente divertido, sempre agradável, muito bem dirigido e interpretado.
Entretanto o impacto (ou a falta dele) que "Memórias Póstumas" causa no espectador é o oposto simétrico do impacto causado pelo romance em seu leitor. Não é fácil entender o porquê desse fenômeno, mas uma pista talvez seja o diferente papel do narrador nas duas obras (livro e filme), sobretudo na relação com o público.
Com a melhor das intenções de fidelidade, talvez Klotzel tenha caído numa armadilha ao mimetizar o procedimento narrativo de Machado, fazendo seu Brás Cubas (Reginaldo Faria) falar diretamente ao espectador. Ocorre que a metalinguagem do romance muda de sentido ao ser transposta de forma tão mecânica para a tela.
O que no livro era provocação ao leitor, no limite da insolência, adquire no filme um caráter conciliatório, quase anestésico.
O narrador de Machado desconcerta o leitor com sua volubilidade de tom e de ritmo (conforme notou Roberto Schwartz). O de Klotzel, ao contrário, serve ao espectador como um guia que lhe mastiga o enredo e apara as arestas do relato, criando continuidade onde havia fragmentação e redundância onde havia surpresa.
E a redundância é inimiga do humor, o que explica por que algumas das passagens mais engraçadas do livro (como a do Cubas menino delatando o beijo do doutor Villaça em dona Eusébia) tornam-se algo insossas no filme.
Outra coisa: ao destacar a vida amorosa do protagonista, sobretudo sua relação com Virgília, Klotzel sacrificou, em parte, a caracterização de Cubas como encarnação da cínica e covarde elite brasileira, a um tempo burguesa e escravista. Isso não anula os grandes acertos, como a bela sequência do delírio do personagem, que se inspira em Méliès, mas lembra irresistivelmente Fellini.

Memórias Póstumas    
Direção: André Klotzel
Produção: Brasil, 2000
Com: Reginaldo Faria, Petrônio Gontijo
Quando: a partir de hoje nos cines Cinearte, Interlagos, Sala UOL e circuito



Texto Anterior: Sumo dos diálogos permanece
Próximo Texto: Mulher solteira procura
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.