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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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Imagem de vanguardista de projeção internacional de Haroldo de Campos não deve obscurecer seu lado metódico

Poeta foi referência na renovação da linguagem

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Personagem de uma novela de Borges", segundo o ensaísta italiano Umberto Eco; "cachalote com barbas de Netuno", no carinhoso retrato feito pelo argentino Julio Cortázar; "cosmonauta do significante", na expressão cunhada pelo crítico João Alexandre Barbosa.
Esses esboços de Haroldo de Campos revelam, a um só tempo, a complexidade de sua obra e o impacto de sua presença pública, que transcendeu em muito os limites da cultura brasileira, estabelecendo correspondências afetivas e intelectuais com autores como Ezra Pound, Octavio Paz e John Cage, além dos já citados.
O cosmopolitismo de Haroldo de Campos não só contribuiu decisivamente para sintonizar o Brasil com as vanguardas do pós-guerra como fez do autor de "Galáxias" uma referência para os renovadores da linguagem poética. Num ensaio de 1955, ele já utilizava a expressão "neobarroco", termo que, nos anos 60 e 70, iria batizar o movimento latino-americano formado ao redor dos cubanos Severo Sarduy e Lezama Lima.
Mas a imagem do vanguardista de projeção internacional, que se firmou sobretudo a partir do fim dos anos 50 com o movimento da Poesia Concreta, não deve obscurecer uma outra faceta da trajetória de Haroldo de Campos: o seu lado metódico, de operário da poesia. Ao "labor sintaxista" correspondia um labor propriamente dito, um cotidiano que conjugava o trabalho como funcionário da USP e contatos com pesquisadores, editores e tradutores que o ajudaram a criar em São Paulo (onde foi professor na PUC) um espaço de circulação de idéias estéticas e publicação de textos.
As relações tensas, porém respeitosas, que Haroldo de Campos manteve com outros teóricos -que procuravam pensar a literatura brasileira a partir de bases mais sociológicas, colocando a identidade nacional como uma questão central da literatura brasileira- se devem em grande parte a esse perfil biográfico.
Ao contrário da maioria dos intelectuais brasileiros, ele não pertencia a uma elite social para quem a estratificação social é um problema que deve ser compreendido e reparado, mas a uma classe média para a qual o trabalho intelectual é um "ofício" que pode ser separado da política.
Haroldo de Campos nunca sucumbiu a esses determinismos ideológicos, mantendo uma atuação política paralela à atividade literária. Compôs poemas de intervenção em momentos como a candidatura de Lula à Presidência da República em 1994 ou o massacre dos sem-terra em Eldorado dos Carajás. Mas talvez esses sejam os momentos de menor voltagem de sua produção, cujo epicentro é a anexação de novos territórios poéticos por meio da atividade tradutória (suas "transcriações" que vão de Homero, Dante e os provençais franceses até Mallarmé, Joyce e Paz) e da atitude ensaística de resgate de autores que não cabem nos esquemas normativos da historiografia literária.
No que diz respeito à invenção, Haroldo de Campos parte, em "Auto do Possesso", do diálogo com o simbolismo mais agressivo, que explicita os elementos de concreção da linguagem. Chega às operações de permutação entre os signos e o espaço visual que marcam os livros da fase concretista, nos quais a materialidade da palavra reitera a essência formal da linguagem literária, ao mesmo tempo em que amplia suas possibilidades de significação.
Mesmo depois da fase "heróica" do concretismo, com seus manifestos e planos-pilotos, Haroldo de Campos persevera nessa experimentação, escrevendo um livro enigmático como "Galáxias" e um de poemas como "Crisantempo", em que o ímpeto vanguardista cede o lugar a "epifanias pós-utópicas", momentos de celebração das leituras, das viagens e dos encontros com amigos.
A obsessão borgeana pela intertextualidade lhe valeu a pecha de um formalismo alienado e alienante. Como lembrava, porém, durante os anos de chumbo ele não se auto-exilou, mas sobreviveu à asfixia do regime militar por meio de uma resistência silenciosa, em que a literatura de vanguarda era uma forma possível de protesto, de ruptura com a linguagem conservadora e estereotipada em que esse mundo sombrio se reproduzia.
Mais recentemente, ele teve de empreender uma outra forma de resistência, em relação à saúde. Quando lhe perguntavam como lidava com essas crises cada vez mais frequentes, Haroldo de Campos conduzia o assunto para sua transcriação da "Ilíada", de Homero. Afinal, ele só encontrava refúgio naquilo que chamava de "homeroterapia".



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