São Paulo, sexta-feira, 17 de setembro de 2004

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"CAMA DE GATO"

Filme de Alexandre Stockler teve exibição recusada por algumas salas devido a polêmicas imagens de sexo

Assista, nem que seja para ficar com raiva

SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA

Três adolescentes típicos de classe média brasileira resolvem armar uma sacanagenzinha para cima da paquera de um deles. Enquanto o casal estiver quase transando no quarto, eis o plano, os outros dois amigos saem de dentro do armário para ver tudo, quem sabe tocar a menina sem que ela perceba ou, percebendo, tentar convencê-la a participar do ménage à quatre. Esse é o ponto de partida de "Cama de Gato", primeiro longa de Alexandre Stockler, que estréia hoje.
Tudo corre da pior maneira possível. Essa pior maneira possível é mostrada sem meios-termos, direta, chapada, insuportável, numa das cenas de estupro mais pesadas do cinema, que não deixa nada a dever à polêmica seqüência do francês "Irreversível", de Gaspar Noé (2002), e, em diversos aspectos, a supera em crueldade.
Primeiro porque enquanto o exemplar europeu distancia o espectador com a violência pela violência, o nacional o aproxima pela verossimilhança de uma brincadeira estúpida de garotos indo longe demais.
Segundo, e reside aí a força de "Cama de Gato", pela colagem de depoimentos de diversos adolescentes de verdade, não-atores que, entre cervejas, risadas e tragos de cigarro, vão construindo na vida real a plausibilidade do que era ficção, mostrando que, sim, tudo o que aconteceu ou vai acontecer é tão provável que o incrível é não ocorrer mais freqüentemente. É um trabalho de edição sutil, metódico e preciso que deve virar a marca fílmica deste talentoso diretor de teatro.
Há ainda o elenco, formado por Caio Blat, Rodrigo Bolzan e Cainan Baladez (o trio de amigos) e a corajosa Rennata Airoldi, que já havia mostrado seu valor na peça "Ka", do falecido Renato Cohen, todos muito bem. Esses são os méritos do filme em si.
Mas há ainda o valor político, extracinema, de "Cama de Gato". O longa digital com algumas inserções em celulóide cumpriu uma verdadeira epopéia para chegar às telas. Tudo começou com uma idéia bem-humorada de fazer a versão tupiniquim do Dogma 95, dos cineastas escandinavos, que nas mãos do jovem paulistano Stockler virou "T.R.A.U.M.A.", ou Tentativa de Realizar Algo de Urgente e Minimamente Audacioso.
Lançado o manifesto, etapas importantes da produção foram realizadas com o auxílio da internet, de uma maneira então pioneira.
Pronto o filme, houve o vendaval de recusas de festivais e, principalmente, de cinemas e cadeias de salas -por ser digital, diziam umas, devido ao conteúdo polêmico, afirmavam outras. Uma delas não tinha visto o mesmo problema ao exibir o filme de Noé (estupro em francês pode, em português pega mal). Stockler pagou por não baixar a cabeça, e só por isso já tem lugar garantido no combalido panteão do cinema independente do Brasil.
Panteão de resto formado por ele, Cláudio Assis (de "Amarelo Manga", o melhor filme brasileiro do ano passado); Paulo Caldas e Lírio Ferreira (de "Baile Perfumado"); Beto Brant (que dispensa apresentações), claro; os patronos Carlos Reichenbach e Ivan Cardoso; o superlativo Sergio Bianchi e pouquíssimos mais. São bodes na sala da corte do cinema tupiniquim "for export". Se você for assistir a apenas um filme brasileiro neste ano, assista a este. Nem que seja para ficar com raiva.


Cama de Gato
    
Produção: Brasil, 2000
Direção: Alexandre Stockler
Com: Caio Blat, Rodrigo Bolzan, Cainan Baladez e Rennata Airoldi
Quando: a partir de hoje, nos cines SP Market, Bristol, Anália Franco e circuito



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