São Paulo, sábado, 17 de novembro de 2001

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MÚSICA ERUDITA

Stravinski, Stokowski, Espantovski

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Isso é que é Dia da República. Da República dos Balés Russos de Diaghilev, que encomendou "O Pássaro de Fogo" a Stravinski em 1910. Anteontem, na Sala São Paulo, Roberto Minczuk regeu um "Pássaro" esfuziante, capaz de retomar controlada e empolgadamente seu rumo duas vezes, depois de 1) uma palheta (ou será que foi uma chave?) ter se rebelado contra o clarinete; 2) o assassinável proprietário de um telefone celular ter se esquecido de desligar o incinerável aparelho, que tocou em plena transição da "Berceuse" para o "Final".
Na gramática imaginária da música, "Osesp" rima com "Stravinski" -como vai ficando cada vez mais claro, depois da "Sinfonia dos Salmos", da "Sagração da Primavera" e do "Rake's Progress". Cada orquestra tem suas afinidades eletivas; e é bom saber que Igor mora no coração da nossa. Tanto mais quando se pensa que eles não tocaram a "Sinfonia em Três Movimentos" ainda, nem "Les Noces", nem "Agon", nem tantas outras maravilhas. A vida é curta, mas a arte é longa, graças a (em russo) Gospodi.
Cavalheiros: foi uma noite de tuba e de trombones. A tuba (ou melhor: "o" tuba, Marcos do Anjos Jr.) ficou feliz desde o início, ribombando em profundezas da "Tocata e Fuga em Ré Menor" de Bach (1685-1750), na transcrição disneayana de Stokowski. A Sala São Paulo ajudou: imensa, o teto móvel jogado para cima até o topo, com o vitral da estação ajudando a compor a impressão de catedral.
Incrível que a música possa soar tão diferente de Bach. Mas não inacreditável; porque essa "Tocata" não tem quase nada de Bach. Só as notas. E a arte fantástica do arranjador -ou melhor: "fantasiática" (já que a transcrição foi feita para o filme "Fantasia")- arranca a música do barroco e faz dela um espaço de experimentação, surpreendentemente liberto do kitsch, seis décadas depois do kitsch original. Quem diria? Foi tão bom que o nome dele merece ser citado por extenso: Leopold Boleslawowicz Stanislaw Antoni Stokowski.
Ladies: foi uma noite das harpas. A linda Lioubov arpejou acordes de harpia, como diria o professor Higgins. Teve companhia nas ondas de "La Mer", de Debussy (1862-1918) -a música das músicas, que a Osesp tocou lindamente, mas com esforço óbvio para não virar o barco. O difícil, aqui, não está onde mais se vê -no equilíbrio de naipes, por exemplo. Está na suspensão, ou ritmo íntimo das formas (proporções áureas e outras obsessões sutis do compositor).
Estranho que, vindo de Wagner, a música possa ter nos dado essa leveza e sofisticação. Nem toda inteligência musical do maestro Minczuk conseguiu fazer nascer ainda o Debussy da Osesp, é verdade. Mas, se um bebê leva nove meses... e é tão mais fácil...
Falta falar de Erich Wolfgang Korngold (1897-1957), menino prodígio, reduzido depois a compositor de trilhas para Hollywood -incluindo a do mítico "Sonho de uma Noite de Verão" de Max Reinhardt. Seu "Concerto para Violino e Orquestra" foi estreado por Jascha Heifetz em 1947. Piada na época: "More corn than gold" ("mais milho do que ouro", aludindo também a "corny", meloso). A piada vale.
De qualquer modo, foi bom escutar -uma vez- o "Concerto", interpretado com virtuosismo pelo jovem violinista francês Laurent Korcia. Instrumentos têm seu destino. O do violino, hoje, está simpaticamente ligado ao personalismo dos roqueiros. Nigelkennedistas como Korcia mandam ver, com trejeitos de arcada que sugerem mais, às vezes, do que o que se vê de olhos fechados. Show extra no bis, de Eugène Ysaye (1858-1931).
Voltando ao "Pássaro". Harpa: dois semitons para cima, dois para baixo, pausadamente. Fagote entoa melancolíssima melodia russíssima. Gospodi, Gospodi, como é bonito.
Um acorde curto e brilhante da orquestra, um bang de titânio na "Dança Infernal" de Stravinski já valeria sozinho o programa. Cavalheiros, foi uma senhora noite. Senhoras, foi um senhor concerto. Eletrizante, empolgante e outras rimas. A arte é bem longa, a vida não é tão curta. São Igor reina nas alturas.


Osesp
    
Regência: Roberto Minczuk
Onde: Sala São Paulo (pça. Júlio Prestes, s/nš; tel. 0/xx/3337-5414)
Quando: hoje, às 16h30
Quanto: R$ 10 a R$ 30




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