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MÚSICA ERUDITA
Stravinski, Stokowski, Espantovski
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Isso é que é Dia da República.
Da República dos Balés Russos
de Diaghilev, que encomendou
"O Pássaro de Fogo" a Stravinski
em 1910. Anteontem, na Sala São
Paulo, Roberto Minczuk regeu
um "Pássaro" esfuziante, capaz
de retomar controlada e empolgadamente seu rumo duas vezes,
depois de 1) uma palheta (ou será
que foi uma chave?) ter se rebelado contra o clarinete; 2) o assassinável proprietário de um telefone
celular ter se esquecido de desligar o incinerável aparelho, que tocou em plena transição da "Berceuse" para o "Final".
Na gramática imaginária da
música, "Osesp" rima com "Stravinski" -como vai ficando cada
vez mais claro, depois da "Sinfonia dos Salmos", da "Sagração da
Primavera" e do "Rake's Progress". Cada orquestra tem suas
afinidades eletivas; e é bom saber
que Igor mora no coração da nossa. Tanto mais quando se pensa
que eles não tocaram a "Sinfonia
em Três Movimentos" ainda,
nem "Les Noces", nem "Agon",
nem tantas outras maravilhas. A
vida é curta, mas a arte é longa,
graças a (em russo) Gospodi.
Cavalheiros: foi uma noite de
tuba e de trombones. A tuba (ou
melhor: "o" tuba, Marcos do Anjos Jr.) ficou feliz desde o início, ribombando em profundezas da
"Tocata e Fuga em Ré Menor" de
Bach (1685-1750), na transcrição
disneayana de Stokowski. A Sala
São Paulo ajudou: imensa, o teto
móvel jogado para cima até o topo, com o vitral da estação ajudando a compor a impressão de
catedral.
Incrível que a música possa soar
tão diferente de Bach. Mas não
inacreditável; porque essa "Tocata" não tem quase nada de Bach.
Só as notas. E a arte fantástica do
arranjador -ou melhor: "fantasiática" (já que a transcrição foi
feita para o filme "Fantasia")-
arranca a música do barroco e faz
dela um espaço de experimentação, surpreendentemente liberto
do kitsch, seis décadas depois do
kitsch original. Quem diria? Foi
tão bom que o nome dele merece
ser citado por extenso: Leopold
Boleslawowicz Stanislaw Antoni
Stokowski.
Ladies: foi uma noite das harpas. A linda Lioubov arpejou
acordes de harpia, como diria o
professor Higgins. Teve companhia nas ondas de "La Mer", de
Debussy (1862-1918) -a música
das músicas, que a Osesp tocou
lindamente, mas com esforço óbvio para não virar o barco. O difícil, aqui, não está onde mais se vê
-no equilíbrio de naipes, por
exemplo. Está na suspensão, ou
ritmo íntimo das formas (proporções áureas e outras obsessões sutis do compositor).
Estranho que, vindo de Wagner, a música possa ter nos dado
essa leveza e sofisticação. Nem toda inteligência musical do maestro Minczuk conseguiu fazer nascer ainda o Debussy da Osesp, é
verdade. Mas, se um bebê leva nove meses... e é tão mais fácil...
Falta falar de Erich Wolfgang
Korngold (1897-1957), menino
prodígio, reduzido depois a compositor de trilhas para Hollywood
-incluindo a do mítico "Sonho
de uma Noite de Verão" de Max
Reinhardt. Seu "Concerto para
Violino e Orquestra" foi estreado
por Jascha Heifetz em 1947. Piada
na época: "More corn than gold"
("mais milho do que ouro", aludindo também a "corny", meloso). A piada vale.
De qualquer modo, foi bom escutar -uma vez- o "Concerto",
interpretado com virtuosismo pelo jovem violinista francês Laurent Korcia. Instrumentos têm
seu destino. O do violino, hoje, está simpaticamente ligado ao personalismo dos roqueiros. Nigelkennedistas como Korcia mandam ver, com trejeitos de arcada
que sugerem mais, às vezes, do
que o que se vê de olhos fechados.
Show extra no bis, de Eugène Ysaye (1858-1931).
Voltando ao "Pássaro". Harpa:
dois semitons para cima, dois para baixo, pausadamente. Fagote
entoa melancolíssima melodia
russíssima. Gospodi, Gospodi,
como é bonito.
Um acorde curto e brilhante da
orquestra, um bang de titânio na
"Dança Infernal" de Stravinski já
valeria sozinho o programa. Cavalheiros, foi uma senhora noite.
Senhoras, foi um senhor concerto. Eletrizante, empolgante e outras rimas. A arte é bem longa, a
vida não é tão curta. São Igor reina nas alturas.
Osesp
Regência: Roberto Minczuk
Onde: Sala São Paulo (pça. Júlio Prestes,
s/nš; tel. 0/xx/3337-5414)
Quando: hoje, às 16h30
Quanto: R$ 10 a R$ 30
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