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BERNARDO CARVALHO
O fetiche do autor
Em "No Decorrer do Tempo"
(1976), de Wim Wenders,
Hanns Zischler faz o papel do intelectual. Ou pelo menos do sujeito que lê livros e tem aparentemente problemas menos práticos
e mais existenciais do que seu colega de estrada, um técnico itinerante que viaja pelo interior da
Alemanha consertando projetores de cinema.
Zischler interpreta um pediatra
em crise, recém-separado da mulher. Sua relação problemática
com o pai, que não vê faz anos e
com quem tem contas a acertar,
desafia os clichês mais baratos da
psicanálise e é provavelmente o
ponto mais fraco do filme.
Numa das primeiras cenas, o
técnico em projetores está parado
com seu caminhão às margens do
Elba quando vê um fusca que
vem à toda pela estrada e mergulha no rio. Em alguns segundos,
Zischler, que dirigia, sai de dentro
do carro, que afunda, e se arrasta
encharcado até a margem, com o
paletó amarfanhado, carregando
uma mala cheia de água, enquanto o outro ri.
Da casualidade desse encontro
nasce uma amizade circunstancial. E daí em diante, por todo o
tempo que passam juntos, viajando de caminhão pelas estradas
alemãs, o técnico só o chamará de
Kamikaze, em referência ao momento em que se conheceram.
Nada além da relação problemática com o pai, vivida por seu
personagem no filme, fazia supor
uma afinidade entre Zischler e
Kafka. Nada indicava a surpreendente obsessão pelo escritor
que, 20 anos depois, o ator afinal
manifestaria num livro publicado
originalmente na Alemanha, em
1996, e que acaba de sair nos Estados Unidos: "Kafka vai ao Cinema" (The University of Chicago
Press).
Apaixonado pelo cinema e pelo
universo do autor de "A Metamorfose", Zischler foi atrás dos filmes aos quais Kafka teria assistido para, num projeto à primeira
vista insensato, reconstituir o
mundo e a época do escritor. Cruzou trechos do diário com as cartas (Kafka não faz menção ao cinema ou à sua influência em sua
obra literária, embora os filmes o
fizessem chorar e se divertir como
ninguém) e fez uma pesquisa minuciosa, em jornais e arquivos,
sobre o que estava em cartaz em
Praga e nas cidades que o escritor
visitou entre 1910 e 1913 e que ele
poderia ter visto.
As informações são tão escassas
e a vontade de reconstituir o universo de Kafka, tão grande, que às
vezes as conexões apresentadas
por Zischler parecem leite tirado
de pedra, já que estão baseadas
unicamente em uma ou outra
frase do escritor e na coincidência
entre as datas das cartas, do diário e da exibição dos filmes.
Muitas vezes, como quando
Zischler vê em trechos do diário
ou das cartas referências subliminares aos filmes, tudo parece não
passar de um esforço incrível de
especulação, suposição e interpretação.
As coisas mudam um pouco de
figura quando alguns raros filmes
(em geral, curiosidades de segunda ordem do cinema mudo) são
de fato mencionados pelo escritor.
E aí Zischler dá início a uma investigação obsessiva em que o
mundo passa a ser também obra
de Kafka, como se as coisas que
ele viu fossem criação sua. Pois
não são apenas os filmes que influenciam a visão do escritor sobre a realidade. Às vezes, Kafka
reconhece (ou recria) no próprio
cotidiano cenas e personagens
dos filmes que viu, transformando a vida em cinema.
É emblemática, por exemplo,
uma passagem das notas escritas
sobre uma viagem que fez pela
Alemanha, em 1911, em companhia de Max Brod, o amigo a
quem se deve a publicação de toda a sua obra póstuma.
Na época, os dois mantinham o
projeto de escrever um romance a
quatro mãos. Quando fazem escala em Munique, Brod convence
uma moça que encontraram no
trem a dar uma volta de táxi pela
cidade com eles. A moça se sente
constrangida pela insistência de
Brod. E Kafka reconhece na situação uma cena do filme "A Escrava Branca", cujo tema era a prostituição forçada de uma jovem de
família: "Kafka projeta a cena do
filme -ligeiramente retocada-
sobre o acontecimento real em
Munique e se desonera da realidade, que para ele é obviamente
uma experiência opressiva".
Zischler também associa as viagens, em especial as de trem, ao
movimento das imagens cinematográficas. E com isso não reproduz apenas um sentimento expresso por Kafka, mas expõe as
marcas que o trabalho com Wenders deve ter deixado no seu imaginário. Se Kafka muitas vezes
via o mundo a sua volta como se
fosse cinema, como uma forma de
escapismo, Zischler prefere ver o
mundo como invenção do escritor. E é por isso que vai buscar no
tempo e nas coisas vividas por
Kafka uma origem kafkiana, como se a realidade, uma vez descrita por ele, passasse a ser sua
obra, sua criação, sua invenção.
Assim, a vontade de reconstituir
o que o escritor viu e sentiu passa
a ter menos a ver com um simples
fetiche em relação à figura do autor do que com o efeito assombroso de sua obra, capaz de criar a
sensação de um outro mundo, até
então inédito e insuspeitado. Se o
que diferencia o grande escritor
dos outros é a capacidade de inventar novos mundos, ampliando
retrospectivamente a realidade
em que as pessoas acreditavam
viver, então Zischler, ao investigar esse mundo como se fosse
obra, não podia ter feito uma homenagem mais pertinente.
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