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São Paulo, terça-feira, 18 de fevereiro de 2003

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BERNARDO CARVALHO

O fetiche do autor

Em "No Decorrer do Tempo" (1976), de Wim Wenders, Hanns Zischler faz o papel do intelectual. Ou pelo menos do sujeito que lê livros e tem aparentemente problemas menos práticos e mais existenciais do que seu colega de estrada, um técnico itinerante que viaja pelo interior da Alemanha consertando projetores de cinema.
Zischler interpreta um pediatra em crise, recém-separado da mulher. Sua relação problemática com o pai, que não vê faz anos e com quem tem contas a acertar, desafia os clichês mais baratos da psicanálise e é provavelmente o ponto mais fraco do filme.
Numa das primeiras cenas, o técnico em projetores está parado com seu caminhão às margens do Elba quando vê um fusca que vem à toda pela estrada e mergulha no rio. Em alguns segundos, Zischler, que dirigia, sai de dentro do carro, que afunda, e se arrasta encharcado até a margem, com o paletó amarfanhado, carregando uma mala cheia de água, enquanto o outro ri.
Da casualidade desse encontro nasce uma amizade circunstancial. E daí em diante, por todo o tempo que passam juntos, viajando de caminhão pelas estradas alemãs, o técnico só o chamará de Kamikaze, em referência ao momento em que se conheceram.
Nada além da relação problemática com o pai, vivida por seu personagem no filme, fazia supor uma afinidade entre Zischler e Kafka. Nada indicava a surpreendente obsessão pelo escritor que, 20 anos depois, o ator afinal manifestaria num livro publicado originalmente na Alemanha, em 1996, e que acaba de sair nos Estados Unidos: "Kafka vai ao Cinema" (The University of Chicago Press).
Apaixonado pelo cinema e pelo universo do autor de "A Metamorfose", Zischler foi atrás dos filmes aos quais Kafka teria assistido para, num projeto à primeira vista insensato, reconstituir o mundo e a época do escritor. Cruzou trechos do diário com as cartas (Kafka não faz menção ao cinema ou à sua influência em sua obra literária, embora os filmes o fizessem chorar e se divertir como ninguém) e fez uma pesquisa minuciosa, em jornais e arquivos, sobre o que estava em cartaz em Praga e nas cidades que o escritor visitou entre 1910 e 1913 e que ele poderia ter visto.
As informações são tão escassas e a vontade de reconstituir o universo de Kafka, tão grande, que às vezes as conexões apresentadas por Zischler parecem leite tirado de pedra, já que estão baseadas unicamente em uma ou outra frase do escritor e na coincidência entre as datas das cartas, do diário e da exibição dos filmes.
Muitas vezes, como quando Zischler vê em trechos do diário ou das cartas referências subliminares aos filmes, tudo parece não passar de um esforço incrível de especulação, suposição e interpretação.
As coisas mudam um pouco de figura quando alguns raros filmes (em geral, curiosidades de segunda ordem do cinema mudo) são de fato mencionados pelo escritor. E aí Zischler dá início a uma investigação obsessiva em que o mundo passa a ser também obra de Kafka, como se as coisas que ele viu fossem criação sua. Pois não são apenas os filmes que influenciam a visão do escritor sobre a realidade. Às vezes, Kafka reconhece (ou recria) no próprio cotidiano cenas e personagens dos filmes que viu, transformando a vida em cinema.
É emblemática, por exemplo, uma passagem das notas escritas sobre uma viagem que fez pela Alemanha, em 1911, em companhia de Max Brod, o amigo a quem se deve a publicação de toda a sua obra póstuma.
Na época, os dois mantinham o projeto de escrever um romance a quatro mãos. Quando fazem escala em Munique, Brod convence uma moça que encontraram no trem a dar uma volta de táxi pela cidade com eles. A moça se sente constrangida pela insistência de Brod. E Kafka reconhece na situação uma cena do filme "A Escrava Branca", cujo tema era a prostituição forçada de uma jovem de família: "Kafka projeta a cena do filme -ligeiramente retocada- sobre o acontecimento real em Munique e se desonera da realidade, que para ele é obviamente uma experiência opressiva".
Zischler também associa as viagens, em especial as de trem, ao movimento das imagens cinematográficas. E com isso não reproduz apenas um sentimento expresso por Kafka, mas expõe as marcas que o trabalho com Wenders deve ter deixado no seu imaginário. Se Kafka muitas vezes via o mundo a sua volta como se fosse cinema, como uma forma de escapismo, Zischler prefere ver o mundo como invenção do escritor. E é por isso que vai buscar no tempo e nas coisas vividas por Kafka uma origem kafkiana, como se a realidade, uma vez descrita por ele, passasse a ser sua obra, sua criação, sua invenção.
Assim, a vontade de reconstituir o que o escritor viu e sentiu passa a ter menos a ver com um simples fetiche em relação à figura do autor do que com o efeito assombroso de sua obra, capaz de criar a sensação de um outro mundo, até então inédito e insuspeitado. Se o que diferencia o grande escritor dos outros é a capacidade de inventar novos mundos, ampliando retrospectivamente a realidade em que as pessoas acreditavam viver, então Zischler, ao investigar esse mundo como se fosse obra, não podia ter feito uma homenagem mais pertinente.


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