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RESENHA DA SEMANA
A lição das conchas
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
"O Partido das
Coisas" (1942),
de Francis Ponge
(1899-1988), pode não ser exatamente o que gostaríamos que fosse numa época
de informações pasteurizadas
pelo excesso e da mais completa ausência de parâmetros.
A despeito do título, não se
trata de um panfleto. Nem da
redenção dos que se recusam a
viver por sequências irrefletidas de ação e reação neste tempo de imposturas publicitárias
e de virtualidades efêmeras,
neste império da burrice em
que resenhar um livro como
"O Partido das Coisas" pode
parecer a coisa mais desinteressante e inútil.
O livro de Ponge não faz uma
descrição pura e simples do
real. É bem mais complexo. O
autor sabe que a própria natureza se encarrega de desfazer
essa ilusão: "...o vento sopra.
Faz voar a areia. E, se uma dessas partículas, forma última e a
mais ínfima do objeto que nos
ocupa, chega a introduzir-se
realmente em nossos olhos, é
assim que a pedra, pela maneira de ofuscar que lhe é característica, pune e encerra nossa
contemplação. A natureza fecha-nos assim os olhos quando
é chegado o momento de inquirir no interior da memória
se as informações que uma longa contemplação nela acumulou não a teriam já provido de
alguns princípios".
Também não há narração.
Não se trata de mais uma dessas ilusões de realidade "baseadas numa história real" (como
se o real fosse narrativo) cuja
demanda parece crescer na
mesma proporção do fascínio
pelo mundo virtual.
Embora não seja um panfleto, nem por isso "O Partido das
Coisas" deixa de ser o avesso
desse mundo, e uma resistência a ele. A começar pelo fato de
exigir a reflexão. E de ser vestígio de um tempo em que a literatura podia ser reflexiva sem
provocar bocejos, quando era
preciso engajar o espírito, educá-lo, para descobri-la. Um esforço que o pragmatismo imediatista de hoje tenta reduzir a
elitismo e perda de tempo.
"O Partido das Coisas" é
exemplo de uma literatura reflexiva que a hipocrisia situacionista tenta descartar como
masturbação elitista, enquanto
defende, sob uma noção grosseira de democracia, uma impostura mercadológica e cínica
que em outros tempos teria sido chamada de populismo. Enfim, é um livro que não se entrega de graça, por simples osmose, que é preciso conquistar,
como acontece com os grandes
livros.
Não é fácil perceber a grandeza de "O Partido das Coisas"
sem um engajamento do espírito. O livro reúne 32 poemas
em prosa (não se trata de prosa
poética, mas de uma prosa cuja
poesia muitas vezes vem da sua
ausência, da incongruência, de
um discurso de aparência científica, por exemplo, o que também tem lá o seu humor). São
pequenos textos, que lembram
as anotações de um estudante
tentando compreender a si
mesmo pelo que o cerca, observando as "coisas": a chuva, o cigarro, o pedaço de carne etc.
Seria uma ingenuidade, porém, acreditar que o livro dá
voz às coisas, e que é fruto de
uma busca radical de objetivismo -afinal, a noção de natureza também é uma criação humana: "as coisas mais simples
da natureza não se abordam
sem as mesuras necessárias,
sem que sejam preenchidas
fôrmas e formalidades".
Ao contrário do "nouveau
roman", que reivindicava ter
em Francis Ponge uma de suas
fontes, "O Partido das Coisas"
está repleto de metáforas antropomórficas. Mas seu objetivo é menos antropomorfizar a
natureza do que compreender
o homem por analogia, tornando a palavra uma secreção do
corpo humano, a exemplo da
concha dos caracóis.
Da observação desses "seres
cuja própria existência é obra
de arte", Ponge tira uma lição:
"essa concha, parte de seu ser, é
ao mesmo tempo obra de arte,
monumento. Ela perdura mais
tempo que eles. E é este o
exemplo que nos dão. Santos,
fazem obra de arte de sua vida
(...). Sua própria secreção se
produz de modo a se enformar.
Nada de exterior a eles, a sua
necessidade, a sua precisão, é
obra sua. Nada de desproporcional (...) a seu ser físico. Nada
que não lhes seja necessário,
obrigatório. Assim traçam aos
homens seu dever. (...) Conhece-te, pois, primeiro a ti mesmo. E aceita-te tal qual és. Em
consonância com teus vícios.
Em proporção com a tua medida".
Em outras palavras, adaptadas às circunstâncias atuais, seria possível dizer: não adianta
querer ser outro para melhor se
adequar ao seu tempo, um
tempo em que tudo lhe é contrário. Sua arte, então, a mais
natural de todas, é resistir.
Em "Seis Propostas para o
Próximo Milênio", quando fala
da exatidão, Italo Calvino cita
Ponge: "(Ele) nos dá o melhor
exemplo de uma luta para fazer
a linguagem se tornar uma linguagem das coisas, partindo
delas e voltando a nós, modificada, com toda a humanidade
que investimos nas coisas.
(...)Mais do que representar essa substância, a palavra se identifica com ela". É a lição das
conchas.
Avaliação: ![](http://www.uol.com.br/fsp/images/ep.gif)
Livro: O Partido das Coisas
Autor: Francis Ponge
Tradutores: Ignacio Antonio Neis,
Michel Peterson, Adalberto Mueller
Jr., Carlos Loria e Júlio Castañon
Guimarães
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 25 (190 págs.)
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