São Paulo, sábado, 18 de março de 2000


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RESENHA DA SEMANA
A lição das conchas

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


"O Partido das Coisas" (1942), de Francis Ponge (1899-1988), pode não ser exatamente o que gostaríamos que fosse numa época de informações pasteurizadas pelo excesso e da mais completa ausência de parâmetros.
A despeito do título, não se trata de um panfleto. Nem da redenção dos que se recusam a viver por sequências irrefletidas de ação e reação neste tempo de imposturas publicitárias e de virtualidades efêmeras, neste império da burrice em que resenhar um livro como "O Partido das Coisas" pode parecer a coisa mais desinteressante e inútil.
O livro de Ponge não faz uma descrição pura e simples do real. É bem mais complexo. O autor sabe que a própria natureza se encarrega de desfazer essa ilusão: "...o vento sopra. Faz voar a areia. E, se uma dessas partículas, forma última e a mais ínfima do objeto que nos ocupa, chega a introduzir-se realmente em nossos olhos, é assim que a pedra, pela maneira de ofuscar que lhe é característica, pune e encerra nossa contemplação. A natureza fecha-nos assim os olhos quando é chegado o momento de inquirir no interior da memória se as informações que uma longa contemplação nela acumulou não a teriam já provido de alguns princípios".
Também não há narração. Não se trata de mais uma dessas ilusões de realidade "baseadas numa história real" (como se o real fosse narrativo) cuja demanda parece crescer na mesma proporção do fascínio pelo mundo virtual.
Embora não seja um panfleto, nem por isso "O Partido das Coisas" deixa de ser o avesso desse mundo, e uma resistência a ele. A começar pelo fato de exigir a reflexão. E de ser vestígio de um tempo em que a literatura podia ser reflexiva sem provocar bocejos, quando era preciso engajar o espírito, educá-lo, para descobri-la. Um esforço que o pragmatismo imediatista de hoje tenta reduzir a elitismo e perda de tempo.
"O Partido das Coisas" é exemplo de uma literatura reflexiva que a hipocrisia situacionista tenta descartar como masturbação elitista, enquanto defende, sob uma noção grosseira de democracia, uma impostura mercadológica e cínica que em outros tempos teria sido chamada de populismo. Enfim, é um livro que não se entrega de graça, por simples osmose, que é preciso conquistar, como acontece com os grandes livros.
Não é fácil perceber a grandeza de "O Partido das Coisas" sem um engajamento do espírito. O livro reúne 32 poemas em prosa (não se trata de prosa poética, mas de uma prosa cuja poesia muitas vezes vem da sua ausência, da incongruência, de um discurso de aparência científica, por exemplo, o que também tem lá o seu humor). São pequenos textos, que lembram as anotações de um estudante tentando compreender a si mesmo pelo que o cerca, observando as "coisas": a chuva, o cigarro, o pedaço de carne etc.
Seria uma ingenuidade, porém, acreditar que o livro dá voz às coisas, e que é fruto de uma busca radical de objetivismo -afinal, a noção de natureza também é uma criação humana: "as coisas mais simples da natureza não se abordam sem as mesuras necessárias, sem que sejam preenchidas fôrmas e formalidades".
Ao contrário do "nouveau roman", que reivindicava ter em Francis Ponge uma de suas fontes, "O Partido das Coisas" está repleto de metáforas antropomórficas. Mas seu objetivo é menos antropomorfizar a natureza do que compreender o homem por analogia, tornando a palavra uma secreção do corpo humano, a exemplo da concha dos caracóis.
Da observação desses "seres cuja própria existência é obra de arte", Ponge tira uma lição: "essa concha, parte de seu ser, é ao mesmo tempo obra de arte, monumento. Ela perdura mais tempo que eles. E é este o exemplo que nos dão. Santos, fazem obra de arte de sua vida (...). Sua própria secreção se produz de modo a se enformar. Nada de exterior a eles, a sua necessidade, a sua precisão, é obra sua. Nada de desproporcional (...) a seu ser físico. Nada que não lhes seja necessário, obrigatório. Assim traçam aos homens seu dever. (...) Conhece-te, pois, primeiro a ti mesmo. E aceita-te tal qual és. Em consonância com teus vícios. Em proporção com a tua medida".
Em outras palavras, adaptadas às circunstâncias atuais, seria possível dizer: não adianta querer ser outro para melhor se adequar ao seu tempo, um tempo em que tudo lhe é contrário. Sua arte, então, a mais natural de todas, é resistir.
Em "Seis Propostas para o Próximo Milênio", quando fala da exatidão, Italo Calvino cita Ponge: "(Ele) nos dá o melhor exemplo de uma luta para fazer a linguagem se tornar uma linguagem das coisas, partindo delas e voltando a nós, modificada, com toda a humanidade que investimos nas coisas. (...)Mais do que representar essa substância, a palavra se identifica com ela". É a lição das conchas.


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Livro: O Partido das Coisas
Autor: Francis Ponge
Tradutores: Ignacio Antonio Neis, Michel Peterson, Adalberto Mueller Jr., Carlos Loria e Júlio Castañon Guimarães
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 25 (190 págs.)


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