São Paulo, sábado, 18 de março de 2000


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9º FESTIVAL DE TEATRO DE CURITIBA
Peça curta do dramaturgo gaúcho do século 19 ganha montagem inédita no Fringe
Qorpo Santo revive em Curitiba


VALMIR SANTOS
enviado especial a Curitiba

Um dos marcos do moderno teatro brasileiro no final do século passado, precursor do absurdo na dramaturgia do país, com passagens por hospícios, relegado ao limbo após a morte, "ressuscitado" nos rebeldes anos 60, enfim, ainda assim a obra do escritor gaúcho José Joaquim de Campos Leão, ou simplesmente Qorpo Santo (1829-1883), seu pseudônimo, não é visitada com a frequência que merece.
A adaptação de uma das suas peças curtas, "Um Credor da Fazenda Nacional", em cartaz na mostra Fringe de Curitiba, é uma chance para conferir a atualidade da produção literária do gaúcho de Triunfo, já validada por poetas como Paulo Leminski e Augusto de Campos.
A iniciativa da montagem é da atriz Georgette Fadel, 26, uma das fundadoras da Cia. do Latão (SP), que agora está dando seus primeiros passos na direção.
Fascinada pela obra de Qorpo Santo, ela pinçou "Um Credor..." das comédias que o dramaturgo escreveu em "Enciqlopédia", condensação de vários dos seus títulos para teatro.
Essa transgressão ortográfica do "c" pelo "q", por exemplo, é apenas a ponta do iceberg surreal que ele constrói com as palavras. Qorpo Santo sempre preferiu a contramão. Ele retratou a sociedade de sua época sem o menor pudor ou falso moralismo -com deferência pela comédia. Entre as mais conhecidas, estão "Mateus e Mateusa", "Eu Sou a Vida: Eu Não Sou a Morte" e "O Marido Extremoso ou o Pai Cuidadoso".
"Um Credor da Fazenda Nacional", possivelmente a primeira montagem no país ("Não encontrei nenhum registro de outra", esclarece a diretora) tem um quê de Franz Kafka. Seu protagonista trabalha numa repartição pública, submisso à correção burocrática, até o dia em que os superiores não honram o pagamento combinado. Mobilizado por essa dívida -ele não encontra justificativa para que não lhe dêem o dinheiro-, o sujeito sofre uma transformação pessoal, rompe o silêncio e luta pelos seus direitos.
"É uma crítica social fortíssima, um brasileiro perdido nos corredores da burocracia, um cidadão que aprende a gritar e questionar as decisões que são tomadas sem que lhe dêem qualquer satisfação", explica Georgette.
Para esticar a "minipeça", a diretora acrescentou cenas de mais duas do escritor, "O Marido Extremoso ou o Pai Cuidadoso" e "Dous Irmãos", que têm afinidade com a história de "Um Credor...".
A encenadora diz que a montagem, e tampouco a dramaturgia de Qorpo Santo, apontam caminhos "fechados" para os temas abordados. "O público deve rir muito, mas aos poucos se dará conta de que seria mais cômico ainda se a história não tratasse justamente das situações que a gente enfrenta no cotidiano", acredita.
Georgette, que atualmente interpreta "Esperando Godot" (Samuel Beckett) na temporada paulistana, sob direção de Cristiane Paoli-Quito, investe nas máscaras do clown e da "commedia dell'arte" para a interpretação dos cinco atores em "Um Credor...", o que acentua a transição entre o onírico e o real nessa saga angustiante.
Alexandre Krug interpreta o protagonista, enquanto Ana Petta, Cátia Pires, Patrícia Gifford e Paula Klein revezam os demais papéis. O espetáculo possui um caráter itinerante, com a platéia se deslocando três vezes de lugar. A relação dos atores com o espaço é determinante, como no corredor do Canal da Música, local da encenação da peça em Curitiba.
Figurinos e objetos cênicos são reciclados (um caixote de feira, uma roupa puída), "refletindo a precariedade em que vivemos".
"Um Credor..." já foi mostrada no teatro-laboratório da USP e terá 16 apresentações no festival -um aquecimento para a temporada prevista para o próximo semestre no Centro Cultural São Paulo.


O jornalista Valmir Santos viaja a convite da organização do festival


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