São Paulo, quarta, 18 de março de 1998

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Ratinho e o mito liberal da livre escolha

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Ratinho. Ratinho. Ratinho. Uns pontos a mais no Ibope, e o assunto vai ficando inevitável. Pergunto-me se a discussão leva a algum lugar. Acho que não. De resto, é muito repetitiva. Ratinho não é nenhum fenômeno "novo" num país que já teve o homem do sapato branco e o programa "Aqui Agora" e tem Silvio Santos, Faustão e Gugu.
Há quem se escandalize novamente. E há os que invocam o velho raciocínio: "Ratinho está apenas oferecendo ao público o que o público quer." Sou dos que se escandalizam -mas, para dizer a verdade, vi muito pouco dos programas de Ratinho. O que vi foi primariedade, mundocanismo e bom-humor.
Seria pior se eu tivesse assistido a defesas da pena de morte, da tortura policial. Apesar do cassetete, Ratinho se comportava mais como feirante do que como torturador.
Pouco importa. Se pensarmos no que a televisão poderia significar de progresso, de esclarecimento, de informação, de educação, de entretenimento inteligente, é claro que Ratinho é um atraso.
Mas aí entramos no velho debate que eu estava criticando. Podemos querer que Ratinho desapareça -mas de que modo? Censura tornou-se uma palavra proibida. Ninguém quer censurar nada. Mas no fundo, que seria bom, seria...
Surge então o outro pólo da polêmica. Se o programa do Ratinho tem Ibope, é porque de algum modo corresponde às necessidades e aos desejos do seu público. Logo, censurar Ratinho seria privar o público de uma espécie de válvula de escape imaginária, seria desassistir a população, que sofre de certas necessidades psicológicas.
O debate então se complica enormemente. Vejamos o argumento da censura. Depois do regime militar, aprendemos a detestar todo e qualquer tipo de censura. Ora, não é bem assim. O diretor de uma revista científica, por exemplo, teria toda razão se censurasse um artigo tentando provar que a Terra não é redonda.
O autor desse artigo pode muito bem reclamar de ter sido "censurado". O fato é que suas reclamações não sensibilizariam muita gente.
Isso porque todo mundo tem mais ou menos claro qual é a função de uma revista científica. No caso da televisão, essa clareza não existe. Acho perfeitamente possível imaginar uma sociedade na qual a TV fosse entendida como um meio que não tem nada a ver com entretenimento: só canais educativos.
Não sei se gostaria de viver nessa sociedade. Mas, teoricamente, não seria absurdo se existisse uma televisão assim. Do mesmo modo, o metrô serve exclusivamente para transportar pessoas. De madrugada, seus vagões dariam ótimos motéis para as classes populares, por que não? Mas ninguém pensa nisso, assim como ninguém reivindica uma TV puramente educativa.
É que mesmo os críticos mais convictos da TV estão sob seu fascínio. De vez em quando, até a Globo mostra o que poderia ser feito de bom, de bonito e de verdadeiro num programa de massas. Refiro-me a "Brasil Legal", por exemplo; ou a algum belo filme, a alguma reportagem importante.
Os bons programas aparecem, então, como álibi da ruindade dominante. Um anúncio ensinando a usar camisinha vale três massacres da serra elétrica. Dez minutos de patacoada na novela justificam a reportagem sobre os PMs torturadores de Diadema.
A Globo raciocina em termos de mercado, está sempre com o livro do "deve" e do "haver" diante dos olhos. O escândalo é que outras emissoras são ainda mais comerciais; não têm a carregar a culpa e a imagem da princesa do Jardim Botânico. De modo que o "deve" e o "haver" da Globo são institucionais, ideológicos, enquanto na Record ou no SBT são mais grosseiramente mercadológicos.
A Globo se sente, então, ameaçada em sua verdade mais íntima, que sempre foi mercadológica também. O interessante é que Ratinho "ideologiza" a disputa mercadológica nua e crua, mostrando-se perseguido pela Globo, como poderia mostrar-se (mas não interessa a ninguém) perseguido pelos intelectuais.
Cria-se então um movimento paradoxal. Há os intelectuais que se aliam à Globo para condenar Ratinho e os intelectuais que se aliam a Ratinho para condenar a Globo.
A lógica da "livre concorrência" engole qualquer raciocínio a respeito do caso.
Mas se seguirmos a idéia do "mercado" até as últimas consequências, os resultados serão igualmente duvidosos. A televisão oferece apenas aquilo que o público quer. Será verdade? O que é "querer"?
Se uma mulher feia, manca e vesga aparece no Silvio Santos procurando namorado, confesso que eu "quero" saber se ela será feliz ou não. Assisto ao programa. Qualquer mundo cão me interessa. Uma cena de pancadaria num estádio de futebol me atrai mais do que um debate sobre Chomsky.
Mas será que divulgando baixarias a TV está atendendo a minhas necessidades? Sim, a algumas. Vejo mesmo aquilo que eu "não quero ver" -pois há uma diferença entre vontade e desejo, tentação e carência, necessidade e fantasia.
Suponho que a exibição de horrores, como faz Ratinho, cria no público a necessidade de ver no dia seguinte o horror seguinte, que neutralize o anterior. Essa necessidade de ver mais horrores é induzida, é pensada em termos de lucro comercial. Tem ao mesmo tempo uma autenticidade psicológica.
Resumindo: o cérebro iluminista, o indivíduo do liberalismo, o sujeito dono de seu bom-senso e de sua razão, aquele capaz de desafiar as convenções dos padres e dos nobres, capaz de fazer a bela revolução burguesa de 1789, é hoje um tipo fragilizado. Entrega-se ao livre-mercado sem coragem de ser um Robespierre censurante, sem coragem de ser um Rousseau adverso à tecnologia.
Reclama do Ratinho, mas é democrático a ponto de admitir que Ratinho "atende" aos interesses do público. Antigamente não era assim. Dizia-se apenas que esses "interesses" do público estavam errados e estatizava-se a televisão. A esquerda nada tinha a ver, porque era muito autoritária, com o Ibope.
Tempos sombrios. Mas talvez sejam igualmente sombrios os tempos em que a esquerda se curva ao Ibope, numa democracia virtual. É como se eu soubesse que todos os rabanetes do mundo estão contaminados, matam em quinze minutos, e dissesse: "não comam rabanetes, vai ser ruim para vocês", e ao mesmo tempo fosse contra a proibição dos rabanetes.
Não é isso o que acontece com os cigarros? O ministério da saúde adverte, e com isso lava as mãos. Utopia de uma sociedade ultraliberal, em que cada pessoa tem bom senso e julga segundo seus próprios critérios. Só que seus próprios critérios são moldados pela publicidade, que finge farsescamente o mito liberal da livre escolha. Por que não estatizam de uma vez a televisão?



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