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Ratinho e o mito liberal da livre escolha
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Ratinho. Ratinho. Ratinho.
Uns pontos a mais no Ibope, e
o assunto vai ficando inevitável. Pergunto-me se a discussão leva a algum lugar. Acho
que não. De resto, é muito repetitiva. Ratinho não é nenhum fenômeno "novo" num
país que já teve o homem do
sapato branco e o programa
"Aqui Agora" e tem Silvio Santos, Faustão e Gugu.
Há quem se escandalize novamente. E há os que invocam
o velho raciocínio: "Ratinho
está apenas oferecendo ao público o que o público quer."
Sou dos que se escandalizam
-mas, para dizer a verdade,
vi muito pouco dos programas
de Ratinho. O que vi foi primariedade, mundocanismo e
bom-humor.
Seria pior se eu tivesse assistido a defesas da pena de morte, da tortura policial. Apesar
do cassetete, Ratinho se comportava mais como feirante do
que como torturador.
Pouco importa. Se pensarmos no que a televisão poderia
significar de progresso, de esclarecimento, de informação,
de educação, de entretenimento inteligente, é claro que Ratinho é um atraso.
Mas aí entramos no velho
debate que eu estava criticando. Podemos querer que Ratinho desapareça -mas de que
modo? Censura tornou-se uma
palavra proibida. Ninguém
quer censurar nada. Mas no
fundo, que seria bom, seria...
Surge então o outro pólo da
polêmica. Se o programa do
Ratinho tem Ibope, é porque
de algum modo corresponde às
necessidades e aos desejos do
seu público. Logo, censurar
Ratinho seria privar o público
de uma espécie de válvula de
escape imaginária, seria desassistir a população, que sofre de
certas necessidades psicológicas.
O debate então se complica
enormemente. Vejamos o argumento da censura. Depois
do regime militar, aprendemos
a detestar todo e qualquer tipo
de censura. Ora, não é bem assim. O diretor de uma revista
científica, por exemplo, teria
toda razão se censurasse um
artigo tentando provar que a
Terra não é redonda.
O autor desse artigo pode
muito bem reclamar de ter sido "censurado". O fato é que
suas reclamações não sensibilizariam muita gente.
Isso porque todo mundo tem
mais ou menos claro qual é a
função de uma revista científica. No caso da televisão, essa
clareza não existe. Acho perfeitamente possível imaginar
uma sociedade na qual a TV
fosse entendida como um meio
que não tem nada a ver com
entretenimento: só canais educativos.
Não sei se gostaria de viver
nessa sociedade. Mas, teoricamente, não seria absurdo se
existisse uma televisão assim.
Do mesmo modo, o metrô serve
exclusivamente para transportar pessoas. De madrugada,
seus vagões dariam ótimos
motéis para as classes populares, por que não? Mas ninguém
pensa nisso, assim como ninguém reivindica uma TV puramente educativa.
É que mesmo os críticos mais
convictos da TV estão sob seu
fascínio. De vez em quando,
até a Globo mostra o que poderia ser feito de bom, de bonito e
de verdadeiro num programa
de massas. Refiro-me a "Brasil
Legal", por exemplo; ou a algum belo filme, a alguma reportagem importante.
Os bons programas aparecem, então, como álibi da
ruindade dominante. Um
anúncio ensinando a usar camisinha vale três massacres da
serra elétrica. Dez minutos de
patacoada na novela justificam a reportagem sobre os
PMs torturadores de Diadema.
A Globo raciocina em termos
de mercado, está sempre com o
livro do "deve" e do "haver"
diante dos olhos. O escândalo é
que outras emissoras são ainda mais comerciais; não têm a
carregar a culpa e a imagem
da princesa do Jardim Botânico. De modo que o "deve" e o
"haver" da Globo são institucionais, ideológicos, enquanto
na Record ou no SBT são mais
grosseiramente mercadológicos.
A Globo se sente, então,
ameaçada em sua verdade
mais íntima, que sempre foi
mercadológica também. O interessante é que Ratinho
"ideologiza" a disputa mercadológica nua e crua, mostrando-se perseguido pela Globo,
como poderia mostrar-se (mas
não interessa a ninguém) perseguido pelos intelectuais.
Cria-se então um movimento
paradoxal. Há os intelectuais
que se aliam à Globo para condenar Ratinho e os intelectuais
que se aliam a Ratinho para
condenar a Globo.
A lógica da "livre concorrência" engole qualquer raciocínio a respeito do caso.
Mas se seguirmos a idéia do
"mercado" até as últimas consequências, os resultados serão
igualmente duvidosos. A televisão oferece apenas aquilo
que o público quer. Será verdade? O que é "querer"?
Se uma mulher feia, manca e
vesga aparece no Silvio Santos
procurando namorado, confesso que eu "quero" saber se
ela será feliz ou não. Assisto ao
programa. Qualquer mundo
cão me interessa. Uma cena de
pancadaria num estádio de futebol me atrai mais do que um
debate sobre Chomsky.
Mas será que divulgando
baixarias a TV está atendendo
a minhas necessidades? Sim, a
algumas. Vejo mesmo aquilo
que eu "não quero ver" -pois
há uma diferença entre vontade e desejo, tentação e carência, necessidade e fantasia.
Suponho que a exibição de
horrores, como faz Ratinho,
cria no público a necessidade
de ver no dia seguinte o horror
seguinte, que neutralize o anterior. Essa necessidade de ver
mais horrores é induzida, é
pensada em termos de lucro
comercial. Tem ao mesmo
tempo uma autenticidade psicológica.
Resumindo: o cérebro iluminista, o indivíduo do liberalismo, o sujeito dono de seu
bom-senso e de sua razão,
aquele capaz de desafiar as
convenções dos padres e dos
nobres, capaz de fazer a bela
revolução burguesa de 1789, é
hoje um tipo fragilizado. Entrega-se ao livre-mercado sem
coragem de ser um Robespierre
censurante, sem coragem de
ser um Rousseau adverso à tecnologia.
Reclama do Ratinho, mas é
democrático a ponto de admitir que Ratinho "atende" aos
interesses do público. Antigamente não era assim. Dizia-se
apenas que esses "interesses"
do público estavam errados e
estatizava-se a televisão. A esquerda nada tinha a ver, porque era muito autoritária, com
o Ibope.
Tempos sombrios. Mas talvez
sejam igualmente sombrios os
tempos em que a esquerda se
curva ao Ibope, numa democracia virtual. É como se eu
soubesse que todos os rabanetes do mundo estão contaminados, matam em quinze minutos, e dissesse: "não comam
rabanetes, vai ser ruim para
vocês", e ao mesmo tempo fosse
contra a proibição dos rabanetes.
Não é isso o que acontece
com os cigarros? O ministério
da saúde adverte, e com isso
lava as mãos. Utopia de uma
sociedade ultraliberal, em que
cada pessoa tem bom senso e
julga segundo seus próprios
critérios. Só que seus próprios
critérios são moldados pela
publicidade, que finge farsescamente o mito liberal da livre
escolha. Por que não estatizam
de uma vez a televisão?
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