São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 2006

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NINA HORTA

Onde foi parar o gosto dos alimentos?

Por onde anda o gosto dos legumes e das frutas? Mudaram eles ou mudamos nós? O melão é de plástico; a banana, verde; o figo, enrustido e duro; a vagem e a cenoura, muito semelhantes, todas as batatas são iguais.
Já leram "Deve ter Sido Alguma Coisa que Comi" (Companhia das Letras), do excelente Jeffrey Steingarten? Ele descreve a chácara Chinos em San Diego, Califórnia, e chega à conclusão de que a tarefa de plantar bem é para os inspirados e possessos, e não para os simples mortais. Só de alface mimosa os Chinos cultivam 60 variedades. Tudo é testado antes, nenhuma semente é deixada ao léu para crescer e ver no que dá.
O engraçado é que, quando se fala em técnicas novas, imagina-se grandes novidades, mas parece que é quase só voltar aos antigos métodos e jeitos de plantar. Trazidos de volta, desvendariam para nós os sabores perdidos. Eu queria entender melhor desse assunto para comer coisas que não tivessem gosto de pano de prato. Se já provei pano de prato molhado? Não e nem precisa. Quem não sabe o gosto de jornal, de papel pardo, de lápis, de fundo de gaveta,de barata, de dia de chuva?
Recebi da editora Campos Elsevier um livro com o nome de "O Julgamento de Paris", e a ignorância é tão grande que pensei que fosse o Paris da Helena de Tróia. Mas não. Era o relato de uma degustação que revolucionou o mercado de vinhos e que aconteceu em Paris em 1976. Spurrier, um inglês que vendia vinhos em Paris, resolveu fazer uma experimentação às cegas no Hotel Intercontinental. Vinhos franceses e californianos, no tempo em que só se dava valor ao vinho francês.
O autor do livro, George M. Taber, da revista "Time", era o único jornalista presente -e ainda por cima californiano. Tudo ocorreu numa salinha pequena e luxuosa, com jurados importantes. A certa altura, ele sentiu que sua reportagem iria emplacar e causar celeuma. "A parte dedicada aos vinhos brancos estava mais ou menos na metade quando comecei a notar algo surpreendente. Os jurados estavam confusos! Identificavam vinhos franceses como californianos e vice-versa." (Se ganhássemos vinhos franceses, a matéria provavelmente nem publicada seria.) Foi um auê, parece que daquele dia em diante transformou-se o mercado das vinícolas.
 
No dia 30 de abril morreu Jean François Revel, filósofo e jornalista francês. Dentre os inúmeros livros que escreveu, há um que interessa aos cozinheiros: "Um Banquete de Palavras" (Cia das Letras), esgotado. É a tentativa de ressuscitar a atmosfera, o gosto de uma comida ou de um vinho do fundão dos tempos. Qual seria o gosto de uma codorna ensopada na Idade Média? De um vinho antes de Cristo? Baseou-se em textos literários, poesia, romance, teatro.
Sua tese principal eram as diferenças entre a comida de aparato, erudita, tagarela, que fala bonito e se apresenta nas mesas de restaurantes, nos cardápios estrelados, e a cozinha burguesa que se desenvolve em silêncio, sem autor, devagar, propriedade de todos, doméstica, tradicional. Encerra a tese com final feliz, casando as duas, a erudita e a popular.
"A história da cozinha é precisamente uma sucessão de trocas, de conflitos, de desavenças e reconciliações entre a cozinha comum e a arte da cozinha."
Imaginem, escreveu o livro nas férias, para se distrair. Um pouco tagarela ele mesmo, às vezes, mas tem parágrafos iluminados, ricas fontes de reflexão e intuições acertadas, centelhas de sua mente brilhante e polêmica. Vale a pena ter o livro. O original é "Un Festin en Paroles". Talvez um bom sebo há de nos devolver a graça de Jean François Revel na história da sensibilidade gastronômica, da antigüidade a nossos dias.


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