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CARLOS HEITOR CONY
Da sempre inevitável condição de moribundo
O moribundo, como as baleias e os micos dourados, é
uma espécie em extinção, mas
ainda os há, e bastante, para
amolar a paciência e a vida dos
restantes mortais, aí incluindo
parentes, vizinhos e conhecidos
circunstanciais ligados ao próprio evento. Falei em ""mortais", e o moribundo é um mortal em pleno exercício da função de morrer.
Existem moribundos crônicos, agudos, revoltados e mansos -a safra é vasta. Houve
tempo em que éramos moribundos em potencial. Hoje,
com a aceleração do processo
de nosso desenvolvimento,
morre-se mais depressa, com a
piedosa ajuda de médicos como
o Dr. Morte, que está em cana
nos Estados Unidos.
Ou do enfermeiro do Hospital
Salgado Filho, no Méier, que
aplicava cloreto de potássio na
veia de doentes terminais para
ganhar comissão das funerárias. Essas intervenções caridosas pretendem suprimir estágios inúteis. E estágio inútil é
esse, o do moribundo.
Certa vez, andava amolado
da vida, purgando uma paixão
antiga, quando fui a um enterro no São João Batista. Em geral, corto relações com os amigos que morrem, o que me dispensa desses compromissos.
Mas estava de baixo astral e
nada tinha a fazer naquele dia
e naquela hora.
Terminado o enterro, caiu
temporal, o carro ficara longe,
um sujeito informou que estava tudo alagado. Foi então que
pensei em ir ficando por ali
mesmo.
Para que andar até o carro,
molhar sapatos, meias e alma,
aturar o engarrafamento, se
mais cedo ou mais tarde teria
de voltar ao cemitério em causa própria? Melhor seria fazer
aquilo que os estrategistas de
nosso desenvolvimento preconizam: queimar etapas. Ficando onde estava, além de abrigado da chuva e demais amolações, eu queimaria uma porção
de etapas.
Voltando aos moribundos:
moribundo e maribondo são
quase homógrafos, mas há entre os dois diferenças sutis e
grossas que não me cabe especificar. Não entendo de um nem
de outro, mas desconfio que o
moribundo é antes de tudo um
forte e um sujeito que, quando
pode, exerce o direito de pronunciar sua última frase e,
querendo ou não querendo,
exala seu último suspiro.
Todos os últimos suspiros são
parecidos com os demais suspiros, em geral, e com os últimos
suspiros, em especial. Sou contra todos os suspiros, desde que,
em remota e superada gulodice
infantil, tomei uma indigestão
daqueles docinhos de açúcar
que levam o nome de suspiro e
que em espanhol parece que
chamam de ""merengue".
Sendo contra os suspiros, que
os poetas românticos chamavam de ""ais!", nada tenho contra as últimas frases. Não só as
aprecio, como as coleciono.
Proeminências da humanidade reservaram suas últimas
forças para esses derradeiros
vagidos da inquietação humana. Muitas delas figuravam
obrigatoriamente no verso daquelas folhinhas que a gente
desfolhava a cada dia -e que
não sei por que não mais se fabricam.
Recebemos hoje, de brinde
pelo fim de ano, calendários
compactos que nos trazem o
ano inteiro e que nos dispensam de arrancar, a cada manhã, o dia da véspera. Antes de
mais nada, era um símbolo
material, mecânico, do tempo
que passava. E era gostoso, a
cada sábado, deparar com o
número vermelho que indicava
o domingo -apesar da insipidez dos domingos.
Pois houve quem na hora extrema bradasse por ""Luz!" e
outros que pedissem a pena para a última estrofe. Confessores
e médicos, em geral, afirmam
que as últimas palavras nem
sempre são publicáveis, mas a
melhor frase que conheço não
foi frase, foi um gesto -e na
certa apócrifo. Narrou-o o padre Cipriano, homem de colossal imaginação, que construiu
em si mesmo a mais edificante
mistura de criança e sábio, de
santo e pecador.
Numa noite do seminário, e
entusiasmado com o próprio
estro, padre Cipriano contou
que Voltaire, à hora da morte,
teve uma sede dos diabos. Pediu água, berrou pela água.
Mas, como demorasse a água, e
já alucinado pela visão do outro mundo, apanhou o penico e
bebeu-o inteiro. Morreu sufocado.
Esse, pelo menos, morreu
dentro de suas posses, ao contrário de Oscar Wilde, que
morreu como viveu, acima de
suas posses, tomando champanhe -estava na França, onde
champanhe nacional é barata
e melhor. Sei de um escoteiro
que, na hora suprema, levantou dois dedos imaginários para o teto e exclamou: ""Sempre
alerta!". E o poeta que teve forças para o primeiro -ou o último- verso de um poema inacabado. ""Hoje comerei rosas!"
Não nos espantemos, se é que
alguém se espantou até aqui.
William Pitt -leio num almanaque- morreu pedindo um
pastel de carne. Alberto, da
Bélgica, príncipe consorte, disse apenas esta verdade: ""Mulherzinha boa". Uma meretriz
do século 18 confessou: ""Tudo
foi muito interessante". E Joseph Green, cirurgião do século
19, com a mão no pulso, foi contando, contando até que constatou: ""Parou".
E morreu.
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