São Paulo, Sexta-feira, 18 de Junho de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
Da sempre inevitável condição de moribundo

O moribundo, como as baleias e os micos dourados, é uma espécie em extinção, mas ainda os há, e bastante, para amolar a paciência e a vida dos restantes mortais, aí incluindo parentes, vizinhos e conhecidos circunstanciais ligados ao próprio evento. Falei em ""mortais", e o moribundo é um mortal em pleno exercício da função de morrer.
Existem moribundos crônicos, agudos, revoltados e mansos -a safra é vasta. Houve tempo em que éramos moribundos em potencial. Hoje, com a aceleração do processo de nosso desenvolvimento, morre-se mais depressa, com a piedosa ajuda de médicos como o Dr. Morte, que está em cana nos Estados Unidos.
Ou do enfermeiro do Hospital Salgado Filho, no Méier, que aplicava cloreto de potássio na veia de doentes terminais para ganhar comissão das funerárias. Essas intervenções caridosas pretendem suprimir estágios inúteis. E estágio inútil é esse, o do moribundo.
Certa vez, andava amolado da vida, purgando uma paixão antiga, quando fui a um enterro no São João Batista. Em geral, corto relações com os amigos que morrem, o que me dispensa desses compromissos. Mas estava de baixo astral e nada tinha a fazer naquele dia e naquela hora.
Terminado o enterro, caiu temporal, o carro ficara longe, um sujeito informou que estava tudo alagado. Foi então que pensei em ir ficando por ali mesmo.
Para que andar até o carro, molhar sapatos, meias e alma, aturar o engarrafamento, se mais cedo ou mais tarde teria de voltar ao cemitério em causa própria? Melhor seria fazer aquilo que os estrategistas de nosso desenvolvimento preconizam: queimar etapas. Ficando onde estava, além de abrigado da chuva e demais amolações, eu queimaria uma porção de etapas.
Voltando aos moribundos: moribundo e maribondo são quase homógrafos, mas há entre os dois diferenças sutis e grossas que não me cabe especificar. Não entendo de um nem de outro, mas desconfio que o moribundo é antes de tudo um forte e um sujeito que, quando pode, exerce o direito de pronunciar sua última frase e, querendo ou não querendo, exala seu último suspiro.
Todos os últimos suspiros são parecidos com os demais suspiros, em geral, e com os últimos suspiros, em especial. Sou contra todos os suspiros, desde que, em remota e superada gulodice infantil, tomei uma indigestão daqueles docinhos de açúcar que levam o nome de suspiro e que em espanhol parece que chamam de ""merengue".
Sendo contra os suspiros, que os poetas românticos chamavam de ""ais!", nada tenho contra as últimas frases. Não só as aprecio, como as coleciono. Proeminências da humanidade reservaram suas últimas forças para esses derradeiros vagidos da inquietação humana. Muitas delas figuravam obrigatoriamente no verso daquelas folhinhas que a gente desfolhava a cada dia -e que não sei por que não mais se fabricam.
Recebemos hoje, de brinde pelo fim de ano, calendários compactos que nos trazem o ano inteiro e que nos dispensam de arrancar, a cada manhã, o dia da véspera. Antes de mais nada, era um símbolo material, mecânico, do tempo que passava. E era gostoso, a cada sábado, deparar com o número vermelho que indicava o domingo -apesar da insipidez dos domingos.
Pois houve quem na hora extrema bradasse por ""Luz!" e outros que pedissem a pena para a última estrofe. Confessores e médicos, em geral, afirmam que as últimas palavras nem sempre são publicáveis, mas a melhor frase que conheço não foi frase, foi um gesto -e na certa apócrifo. Narrou-o o padre Cipriano, homem de colossal imaginação, que construiu em si mesmo a mais edificante mistura de criança e sábio, de santo e pecador.
Numa noite do seminário, e entusiasmado com o próprio estro, padre Cipriano contou que Voltaire, à hora da morte, teve uma sede dos diabos. Pediu água, berrou pela água. Mas, como demorasse a água, e já alucinado pela visão do outro mundo, apanhou o penico e bebeu-o inteiro. Morreu sufocado.
Esse, pelo menos, morreu dentro de suas posses, ao contrário de Oscar Wilde, que morreu como viveu, acima de suas posses, tomando champanhe -estava na França, onde champanhe nacional é barata e melhor. Sei de um escoteiro que, na hora suprema, levantou dois dedos imaginários para o teto e exclamou: ""Sempre alerta!". E o poeta que teve forças para o primeiro -ou o último- verso de um poema inacabado. ""Hoje comerei rosas!"
Não nos espantemos, se é que alguém se espantou até aqui. William Pitt -leio num almanaque- morreu pedindo um pastel de carne. Alberto, da Bélgica, príncipe consorte, disse apenas esta verdade: ""Mulherzinha boa". Uma meretriz do século 18 confessou: ""Tudo foi muito interessante". E Joseph Green, cirurgião do século 19, com a mão no pulso, foi contando, contando até que constatou: ""Parou".
E morreu.


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