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GASTRONOMIA
Doença que não tem cura
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
O autor é Felipe Fernandez
Armesto, o livro, "Near a
Thousand Tables", editora The
Free Press, uma história da comida...
Dizia Lord Northcliffe aos jornalistas que quatro assuntos eram
de interesse público, ou melhor,
eram lidos. Crime, amor, dinheiro e comida. O nosso autor sente
que só o último é fundamental e
universal. E que, apesar disso, é
assunto ratafiá (gíria recém-inventada para coisas de segunda
classe) nas instituições acadêmicas. Quem escreve sobre comida
são gordas senhoras donas de bufês, amadores e gente com olhos
presos no passado, ah, como era
gostoso o meu francês!
O método que Armesto adotou
foi o de classificar o material existente em oito grande revoluções
que não aconteceram sequencialmente, foram acontecendo. Entre
elas, por exemplo, a invenção do
cozinhar, episódio que separa o
ser humano do restante da natureza. O modo dele falar sobre isso,
coisa que todo mundo já falou, é
que faz a diferença. Vai devagar,
refletindo sobre os desajeitados
passos da invenção da primeira
panela, e a primeira colher, e o
primeiro fogão, e o primeiro forno. Como seria difícil cozinhar
coisas com caldo. Sopa era um
prato três estrelas. Uma pele de
bicho morto, tratada, em formato
de trouxa, cheia de água, sobre o
fogo. Punham pedras na fogueira
e quando quentes eram jogadas
na água da trouxa que fervia rapidamente. Aí se fazia a sopa e, no
fim, tiravam-se as pedras. Feliz a
mulher desgrenhada que conseguia uma carapaça de tartaruga
bem grande para suas moquecas,
era como ter uma Le Creuset, objeto de inveja das vizinhas.
Logo parte para observações
nada convencionais sobre canibalismo e seus significados, concordando que Hannibal Lecter teve
antepassados ilustres, mas não
tantos quanto se imaginam. Ao
tratar um povo de canibal, de selvagem, tínhamos todos os direitos de convertê-los e ensinar-lhes
filosofia.
Os críticos o chamam de iconoclasta, querem ver o porquê? Pode
parecer estranho, reflete ele, mas
estamos atualmente representando muito bem os canibais da história. Queremos que a comida
nos transforme, nos deixe melhores, mais bonitos. A dieta saudável de verduras, o vegetarianismo
radical, não tem a intenção de nos
fazer sobreviver, é um problema
moral, queremos a disciplina, o
embelezamento, a pureza maior,
o sucesso mundano, a superioridade moral. Já que não é possível
comer a Julia Roberts, comer o
que ela come e tentar acordar
igual a ela. Armesto não gosta de
dietas, decididamente. Acha que
se originaram nas duas últimas
guerras, com todas as manias de
vitaminas, quando os governos
estimularam a pesquisa nutricional. A vitória seria dos exércitos
mais vitaminados. Bem, depois
da Segunda Guerra as crianças inglesas estavam mais saudáveis,
para surpresa de todo mundo. Foi
o pão preto, gritaram os nutricionistas, e não se livraram dessa
idéia até hoje.
Não foi o pão preto, argumenta
ele, foi o pão, comeram mais pão,
só isso. A comida foi melhor distribuída, as crianças foram tiradas
de favelas e levadas para o campo.
Todo o resto das conclusões que
nos perseguem até hoje são frutos
da mania dos nutricionistas de se
acharem do lado da ciência e alijados completamente dos contextos culturais. Mas são filhos de sua
época e herdeiros de uma tradição já fora de moda, a obsessão
com o regime, que é de per si um
mal moderno, a doença que nenhuma dieta pode curar. Vroom!!
PS - Se a ilustração acima não
concordar com o texto é porque
foi feita para saudar o vinho Miolo 43, apresentado num jantar no
restaurante Figueira. A comida
era boa, o vinho era bom e vendido só pela internet (www.mio
lo.com.br). Além da surpresa de
descobrir que estão fazendo boa
grappa e um moscatel de colheita
tardia maravilhoso, aqui mesmo,
no sul do Brasil... A cronista que
vos escreve distraiu-se, como
sempre, quando bebe e come do
bom e do melhor, e começou a
pensar em dietas extremas. Daí o
assunto da crônica, e o Miolo fica
devidamente saudado, com seu
terroir 43, pelo desenho de Maria
Eugênia, que é o que basta.
ninahort@uol.com.br
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