São Paulo, quinta-feira, 18 de julho de 2002

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GASTRONOMIA

Doença que não tem cura

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

O autor é Felipe Fernandez Armesto, o livro, "Near a Thousand Tables", editora The Free Press, uma história da comida...
Dizia Lord Northcliffe aos jornalistas que quatro assuntos eram de interesse público, ou melhor, eram lidos. Crime, amor, dinheiro e comida. O nosso autor sente que só o último é fundamental e universal. E que, apesar disso, é assunto ratafiá (gíria recém-inventada para coisas de segunda classe) nas instituições acadêmicas. Quem escreve sobre comida são gordas senhoras donas de bufês, amadores e gente com olhos presos no passado, ah, como era gostoso o meu francês!
O método que Armesto adotou foi o de classificar o material existente em oito grande revoluções que não aconteceram sequencialmente, foram acontecendo. Entre elas, por exemplo, a invenção do cozinhar, episódio que separa o ser humano do restante da natureza. O modo dele falar sobre isso, coisa que todo mundo já falou, é que faz a diferença. Vai devagar, refletindo sobre os desajeitados passos da invenção da primeira panela, e a primeira colher, e o primeiro fogão, e o primeiro forno. Como seria difícil cozinhar coisas com caldo. Sopa era um prato três estrelas. Uma pele de bicho morto, tratada, em formato de trouxa, cheia de água, sobre o fogo. Punham pedras na fogueira e quando quentes eram jogadas na água da trouxa que fervia rapidamente. Aí se fazia a sopa e, no fim, tiravam-se as pedras. Feliz a mulher desgrenhada que conseguia uma carapaça de tartaruga bem grande para suas moquecas, era como ter uma Le Creuset, objeto de inveja das vizinhas.
Logo parte para observações nada convencionais sobre canibalismo e seus significados, concordando que Hannibal Lecter teve antepassados ilustres, mas não tantos quanto se imaginam. Ao tratar um povo de canibal, de selvagem, tínhamos todos os direitos de convertê-los e ensinar-lhes filosofia.
Os críticos o chamam de iconoclasta, querem ver o porquê? Pode parecer estranho, reflete ele, mas estamos atualmente representando muito bem os canibais da história. Queremos que a comida nos transforme, nos deixe melhores, mais bonitos. A dieta saudável de verduras, o vegetarianismo radical, não tem a intenção de nos fazer sobreviver, é um problema moral, queremos a disciplina, o embelezamento, a pureza maior, o sucesso mundano, a superioridade moral. Já que não é possível comer a Julia Roberts, comer o que ela come e tentar acordar igual a ela. Armesto não gosta de dietas, decididamente. Acha que se originaram nas duas últimas guerras, com todas as manias de vitaminas, quando os governos estimularam a pesquisa nutricional. A vitória seria dos exércitos mais vitaminados. Bem, depois da Segunda Guerra as crianças inglesas estavam mais saudáveis, para surpresa de todo mundo. Foi o pão preto, gritaram os nutricionistas, e não se livraram dessa idéia até hoje.
Não foi o pão preto, argumenta ele, foi o pão, comeram mais pão, só isso. A comida foi melhor distribuída, as crianças foram tiradas de favelas e levadas para o campo. Todo o resto das conclusões que nos perseguem até hoje são frutos da mania dos nutricionistas de se acharem do lado da ciência e alijados completamente dos contextos culturais. Mas são filhos de sua época e herdeiros de uma tradição já fora de moda, a obsessão com o regime, que é de per si um mal moderno, a doença que nenhuma dieta pode curar. Vroom!!
PS - Se a ilustração acima não concordar com o texto é porque foi feita para saudar o vinho Miolo 43, apresentado num jantar no restaurante Figueira. A comida era boa, o vinho era bom e vendido só pela internet (www.mio lo.com.br). Além da surpresa de descobrir que estão fazendo boa grappa e um moscatel de colheita tardia maravilhoso, aqui mesmo, no sul do Brasil... A cronista que vos escreve distraiu-se, como sempre, quando bebe e come do bom e do melhor, e começou a pensar em dietas extremas. Daí o assunto da crônica, e o Miolo fica devidamente saudado, com seu terroir 43, pelo desenho de Maria Eugênia, que é o que basta.

ninahort@uol.com.br



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