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MEMÓRIA
Leia texto de 1996 do cubano Cabrera Infante em homenagem a Haroldo de Campos, morto anteontem em SP
Poeta concebeu "galáxia" de milhares de estrelas
GUILLERMO CABRERA INFANTE
Haroldo de Campos chegou pela primeira vez a minha casa da Gloucester Road e a
transformou em Glowster Road: a
rua que fulgia, refulgia com seu
resplendor. À primeira vista era
alto, gordo, barbudo como uma
versão de algum Papai Noel do
sul. Sua língua era lusa, ilustre, lúdica. Conversamos. Melhor dizendo, ele conversou, com seu tonitruante espanhol perfeito, mas
com um certo sotaque, uma entonação brasileira que o tornava encantador, encantatório.
Falamos de outros autores que
moravam mais ou menos em
Londres e também de um outro
que morava em Barcelona. Ele me
disse: "Eles não me interessam.
Um best-seller não tem sentido
para mim, se estamos falando de
literatura. Nem Cervantes nem
Joyce nem Machado foram best-sellers, mas eles são a literatura.
Por outro lado, não me interessa a
literatura narrativa. Essa é uma
coisa que deve ser deixada para o
cinema". Será preciso dizer que
estávamos de acordo, um acordo
que ainda perdura? Isso foi em
1968, nos encontramos diversas
vezes depois: em Londres, em Nova York, em São Paulo.
Em certa ocasião, Haroldo quebrou uma perna e com ela engessada parecia que Papai Noel havia
esquecido de limpar a neve de um
de seus membros. Mais adiante
morou em Chelsea, coração da
"Swinging London", numa casa
alugada por Caetano e Gil com
mais 40 músicos. Haroldo, central, contava casos, lia poemas, recitava versos e toda aquela patrulha da aurora (ninguém se deitava
antes das três da manhã. Como
faziam para saber a hora? Muito
simples: Haroldo cantava a valsa
"As Três da Manhã", que nenhum
sabia) e dormiam até tarde.
Haroldo se transformou num
desses belos adormecidos até tarde e um que outro monólogo seu
passou a ser canção. Nunca o vi
tão feliz quanto entre aqueles moços: eles cantavam, ele contava.
Uma vez, em Nova York (ou foi
em Yale, universidade da qual ele
parecia ter a chave? Nova York,
Manhattan, a Grande Maçã, que
mais?), vi que Haroldo havia ganho tantas libras sem perder sua
jovialidade que Emir Monegal,
seu amigo, meu amigo, nosso
amigo, estava preocupado com
sua saúde. Não com a própria,
que devia tê-lo preocupado mais,
porque pouco depois morria de
câncer do cólon. Ao passo que
Haroldo, como Johnny Walker,
continua tão lampeiro!
Para prová-lo, quando fui a São
Paulo, convidado pela Folha, Haroldo organizou um concerto
com Caetano e Gil cantando suas
canções, enquanto eu lia um ou
dois fragmentos dificilmente legíveis, mas facilmente esquecíveis.
Mais de 2.000 pessoas, quase todos jovens, foram ouvir -Gil e
Caetano. O que demonstra a força
convocatória de Haroldo.
Não é em vão que seu nome é
Haroldo, que no antigo Norse
quer dizer "poder armado". Esse
é o nome preferido de Borges,
lembrando o rei saxão que lutou
contra Guilherme o Conquistador -para perder a batalha de
Hastings. "Lá, num convento",
lembrei a Haroldo, "estudaram
minhas filhas Ana e Carola". Para
falar um inglês que é uma mistura
de anglo e de saxão com muito do
francês que o rei Guilherme levou
consigo ao desembarcar.
Haroldo domina todos esses
idiomas, mas, além disso, domina
a linguagem, como provou em
seus poemas, onde não apenas a
palavra, mas também a letra, significa poesia. Suas traduções (de
Joyce, do Joyce da poesia "Mallarmé") permitiram-lhe conversar (e
converter) com os autores mais
abstrusos em verso abstrato. Por
outro lado (o melhor lado), não
conheço melhor animador da
cultura no Brasil e fora do. Só seu
irmão Augusto, um cavalheiro
paulino, está à sua altura na América do Sul, que é como dizer
América, que é como dizer um
novo continente para a literatura.
Haroldo de Campos concebeu
sua "galáxia" de milhares de estrelas. Agora, em minha rima,
quero que seja celebrado como
uma delas.
Texto lido em homenagem a Haroldo de
Campos na PUC-SP, em 4 de outubro de
1996
Guillermo Cabrera Infante, 74, é escritor cubano, autor de "Três Tristes Tigres"
e vencedor do Prêmio Cervantes 1997
Tradução Heloisa Jahn
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