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São Paulo, segunda-feira, 18 de agosto de 2003

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MEMÓRIA

Leia texto de 1996 do cubano Cabrera Infante em homenagem a Haroldo de Campos, morto anteontem em SP

Poeta concebeu "galáxia" de milhares de estrelas

GUILLERMO CABRERA INFANTE

Haroldo de Campos chegou pela primeira vez a minha casa da Gloucester Road e a transformou em Glowster Road: a rua que fulgia, refulgia com seu resplendor. À primeira vista era alto, gordo, barbudo como uma versão de algum Papai Noel do sul. Sua língua era lusa, ilustre, lúdica. Conversamos. Melhor dizendo, ele conversou, com seu tonitruante espanhol perfeito, mas com um certo sotaque, uma entonação brasileira que o tornava encantador, encantatório.
Falamos de outros autores que moravam mais ou menos em Londres e também de um outro que morava em Barcelona. Ele me disse: "Eles não me interessam. Um best-seller não tem sentido para mim, se estamos falando de literatura. Nem Cervantes nem Joyce nem Machado foram best-sellers, mas eles são a literatura. Por outro lado, não me interessa a literatura narrativa. Essa é uma coisa que deve ser deixada para o cinema". Será preciso dizer que estávamos de acordo, um acordo que ainda perdura? Isso foi em 1968, nos encontramos diversas vezes depois: em Londres, em Nova York, em São Paulo.
Em certa ocasião, Haroldo quebrou uma perna e com ela engessada parecia que Papai Noel havia esquecido de limpar a neve de um de seus membros. Mais adiante morou em Chelsea, coração da "Swinging London", numa casa alugada por Caetano e Gil com mais 40 músicos. Haroldo, central, contava casos, lia poemas, recitava versos e toda aquela patrulha da aurora (ninguém se deitava antes das três da manhã. Como faziam para saber a hora? Muito simples: Haroldo cantava a valsa "As Três da Manhã", que nenhum sabia) e dormiam até tarde.
Haroldo se transformou num desses belos adormecidos até tarde e um que outro monólogo seu passou a ser canção. Nunca o vi tão feliz quanto entre aqueles moços: eles cantavam, ele contava.
Uma vez, em Nova York (ou foi em Yale, universidade da qual ele parecia ter a chave? Nova York, Manhattan, a Grande Maçã, que mais?), vi que Haroldo havia ganho tantas libras sem perder sua jovialidade que Emir Monegal, seu amigo, meu amigo, nosso amigo, estava preocupado com sua saúde. Não com a própria, que devia tê-lo preocupado mais, porque pouco depois morria de câncer do cólon. Ao passo que Haroldo, como Johnny Walker, continua tão lampeiro!
Para prová-lo, quando fui a São Paulo, convidado pela Folha, Haroldo organizou um concerto com Caetano e Gil cantando suas canções, enquanto eu lia um ou dois fragmentos dificilmente legíveis, mas facilmente esquecíveis. Mais de 2.000 pessoas, quase todos jovens, foram ouvir -Gil e Caetano. O que demonstra a força convocatória de Haroldo.
Não é em vão que seu nome é Haroldo, que no antigo Norse quer dizer "poder armado". Esse é o nome preferido de Borges, lembrando o rei saxão que lutou contra Guilherme o Conquistador -para perder a batalha de Hastings. "Lá, num convento", lembrei a Haroldo, "estudaram minhas filhas Ana e Carola". Para falar um inglês que é uma mistura de anglo e de saxão com muito do francês que o rei Guilherme levou consigo ao desembarcar.
Haroldo domina todos esses idiomas, mas, além disso, domina a linguagem, como provou em seus poemas, onde não apenas a palavra, mas também a letra, significa poesia. Suas traduções (de Joyce, do Joyce da poesia "Mallarmé") permitiram-lhe conversar (e converter) com os autores mais abstrusos em verso abstrato. Por outro lado (o melhor lado), não conheço melhor animador da cultura no Brasil e fora do. Só seu irmão Augusto, um cavalheiro paulino, está à sua altura na América do Sul, que é como dizer América, que é como dizer um novo continente para a literatura.
Haroldo de Campos concebeu sua "galáxia" de milhares de estrelas. Agora, em minha rima, quero que seja celebrado como uma delas.


Texto lido em homenagem a Haroldo de Campos na PUC-SP, em 4 de outubro de 1996

Guillermo Cabrera Infante, 74, é escritor cubano, autor de "Três Tristes Tigres" e vencedor do Prêmio Cervantes 1997

Tradução Heloisa Jahn



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