São Paulo, Sábado, 18 de Setembro de 1999
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RESENHA DA SEMANA

Cegueira digital



BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

"A Bomba Informática", coletânea de 14 artigos do urbanista e ensaísta francês Paul Virilio publicados em jornais de língua alemã entre 96 e 98, é um livro marcado pela nostalgia de um tempo perdido de valores éticos e do bom senso. Última tentativa de resistir à nova realidade, fazendo uso de um pensamento crítico e perspicaz antes que ele seja abolido de vez.
Todo o problema de Virilio consiste em mostrar que vivemos o fim da crítica e de sua possibilidade. Ensaísta notório por suas reflexões sobre o capitalismo pós-industrial, não lhe resta outro meio para cumprir seu objetivo senão o de se agarrar a um discurso apocalíptico que revela muito de um novo platonismo transformado em pensamento de resistência: a crítica da incapacidade progressiva -com o advento de noções como "cybertime" e "cyberspace"- de se distinguir o real da representação.
"A Bomba Informática" é um livro "do contra" -o que, nem que seja só pela raridade, é saudável e necessário. Contra a atual idéia de virtualização e desrealização da realidade representada à perfeição por uma tecnocracia globalizada que aclama a eficácia como parâmetro máximo. Contra a corrente do "cibermundo" do capitalismo pós-industrial americano.
Munido de exemplos muito palpáveis, Virilio tenta mostrar que essa promessa de eficiência não passa de um "subproduto do ilusionismo que, desde a mais alta antiguidade, aproveitou-se dos limites visuais do público, destruindo sua capacidade de distinguir o real do que ele acredita ser real e verdadeiro... Tal como esses mágicos gregos que, segundo Platão, pretendiam recriar o planeta à sua vontade".
Escritos para jornais, esses textos têm muito de jornalísticos (fazem referência a assuntos da atualidade, que vão da morte de Ayrton Senna ao movimento dos sem-terra) e citam os "faits divers" mais esdrúxulos e ao mesmo tempo muito representativos desse novo tempo como exemplos de uma desrealização da realidade, sintomas de uma incapacidade crítica e de resistência típica do advento do mundo informatizado da globalização.
Virilio pode partir, por exemplo, da imagem da caquética estação espacial Mir como marco do fim do mito da conquista do espaço pelo homem para refletir sobre o novo mito da automatização, em que o ônus das decisões é transferido dos ombros dos homens para as máquinas, promovendo um estado deliberadamente infantilizado em que a responsabilidade da ação é substituída pelo modelo informático do automatismo reativo da interação.
Pode tratar também da história de uma americana que, assombrada pelo que dizia serem espíritos, espalhou câmeras por toda a sua casa, como num sistema de segurança, e pôs em seguida as imagens ao vivo e em permanência na Internet, permitindo ao mundo inteiro ligado na rede vigiá-la sob o pretexto de ajudar na caça aos fantasmas. O caso pressupõe, segundo Virilio, a emergência de um estado de televigilância indiscriminada.
Toda a preocupação desses artigos diz respeito à "desumanidade" que se instala com essas inversões -ou simples perdas- inconscientes de valores, características de um progresso por assim dizer negativo. Virilio faz apelo ao velho bom senso para pôr os pingos nos iis de um estado de coisas que precisa banir toda crítica e ignorar a si mesmo para avançar inconsciente diante da ilusão de um mundo de puro desempenho e nenhuma ética.
A ciência, por exemplo, a partir do momento em que se pretende menos à "verdade", como outrora, que à "eficácia imediata" e, sob a pressão dos abusos da mídia, passa a se preocupar mais com o impacto do anúncio de um achado do que com uma descoberta autêntica, torna-se uma tecnociência, eliminando ao mesmo tempo toda possibilidade de conhecimento.
É agora uma "ciência do extremo" em sua "corrida aos desempenhos-limites", que Virilio compara aos chamados esportes radicais, "em que se corre voluntariamente o risco de morte, sob pretexto de se atingir um desempenho recorde".
O sábio é confundido com o campeão. Onde havia uma ciência da verossimilhança, ligada à descoberta de uma verdade relativa, agora passa a vigorar uma ciência do inverossímil, empenhada no desenvolvimento de uma realidade virtual.
A passagem da antiga representação analógica, baseada na verossimilhança, para uma representação digital, em que as informações audiovisuais, táteis e olfativas são comprimidas e codificadas em números, promove o "crescente empobrecimento das aparências sensíveis" e o surgimento de um mundo que corre o risco de, não precisando mais ver, não mais se enxergar.


Avaliação:    

Livro: A Bomba Informática
Autor: Paul Virilio
Tradução: Luciano Vieira Machado
Lançamento: Estação Liberdade Quanto: R$ 22 (142 págs.)


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