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RESENHA DA SEMANA
Cegueira digital
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
"A Bomba Informática", coletânea de 14 artigos do urbanista e ensaísta francês Paul Virilio publicados em jornais de
língua alemã entre 96 e 98, é um
livro marcado pela nostalgia de
um tempo perdido de valores
éticos e do bom senso. Última
tentativa de resistir à nova realidade, fazendo uso de um pensamento crítico e perspicaz antes que ele seja abolido de vez.
Todo o problema de Virilio
consiste em mostrar que vivemos o fim da crítica e de sua
possibilidade. Ensaísta notório
por suas reflexões sobre o capitalismo pós-industrial, não lhe
resta outro meio para cumprir
seu objetivo senão o de se agarrar a um discurso apocalíptico
que revela muito de um novo
platonismo transformado em
pensamento de resistência: a
crítica da incapacidade progressiva -com o advento de
noções como "cybertime" e
"cyberspace"- de se distinguir o real da representação.
"A Bomba Informática" é um
livro "do contra" -o que, nem
que seja só pela raridade, é saudável e necessário. Contra a
atual idéia de virtualização e
desrealização da realidade representada à perfeição por
uma tecnocracia globalizada
que aclama a eficácia como parâmetro máximo. Contra a
corrente do "cibermundo" do
capitalismo pós-industrial
americano.
Munido de exemplos muito
palpáveis, Virilio tenta mostrar
que essa promessa de eficiência
não passa de um "subproduto
do ilusionismo que, desde a
mais alta antiguidade, aproveitou-se dos limites visuais do
público, destruindo sua capacidade de distinguir o real do que
ele acredita ser real e verdadeiro... Tal como esses mágicos
gregos que, segundo Platão,
pretendiam recriar o planeta à
sua vontade".
Escritos para jornais, esses
textos têm muito de jornalísticos (fazem referência a assuntos da atualidade, que vão da
morte de Ayrton Senna ao movimento dos sem-terra) e citam
os "faits divers" mais esdrúxulos e ao mesmo tempo muito
representativos desse novo
tempo como exemplos de uma
desrealização da realidade, sintomas de uma incapacidade
crítica e de resistência típica do
advento do mundo informatizado da globalização.
Virilio pode partir, por exemplo, da imagem da caquética
estação espacial Mir como
marco do fim do mito da conquista do espaço pelo homem
para refletir sobre o novo mito
da automatização, em que o
ônus das decisões é transferido
dos ombros dos homens para
as máquinas, promovendo um
estado deliberadamente infantilizado em que a responsabilidade da ação é substituída pelo
modelo informático do automatismo reativo da interação.
Pode tratar também da história de uma americana que, assombrada pelo que dizia serem
espíritos, espalhou câmeras
por toda a sua casa, como num
sistema de segurança, e pôs em
seguida as imagens ao vivo e
em permanência na Internet,
permitindo ao mundo inteiro
ligado na rede vigiá-la sob o
pretexto de ajudar na caça aos
fantasmas. O caso pressupõe,
segundo Virilio, a emergência
de um estado de televigilância
indiscriminada.
Toda a preocupação desses
artigos diz respeito à "desumanidade" que se instala com essas inversões -ou simples
perdas- inconscientes de valores, características de um
progresso por assim dizer negativo. Virilio faz apelo ao velho bom senso para pôr os pingos nos iis de um estado de coisas que precisa banir toda crítica e ignorar a si mesmo para
avançar inconsciente diante da
ilusão de um mundo de puro
desempenho e nenhuma ética.
A ciência, por exemplo, a
partir do momento em que se
pretende menos à "verdade",
como outrora, que à "eficácia
imediata" e, sob a pressão dos
abusos da mídia, passa a se
preocupar mais com o impacto
do anúncio de um achado do
que com uma descoberta autêntica, torna-se uma tecnociência, eliminando ao mesmo
tempo toda possibilidade de
conhecimento.
É agora uma "ciência do extremo" em sua "corrida aos desempenhos-limites", que Virilio compara aos chamados esportes radicais, "em que se corre voluntariamente o risco de
morte, sob pretexto de se atingir um desempenho recorde".
O sábio é confundido com o
campeão. Onde havia uma
ciência da verossimilhança, ligada à descoberta de uma verdade relativa, agora passa a vigorar uma ciência do inverossímil, empenhada no desenvolvimento de uma realidade virtual.
A passagem da antiga representação analógica, baseada na
verossimilhança, para uma representação digital, em que as
informações audiovisuais, táteis e olfativas são comprimidas e codificadas em números,
promove o "crescente empobrecimento das aparências
sensíveis" e o surgimento de
um mundo que corre o risco
de, não precisando mais ver,
não mais se enxergar.
Avaliação:
Livro: A Bomba Informática
Autor: Paul Virilio
Tradução: Luciano Vieira Machado
Lançamento: Estação Liberdade
Quanto: R$ 22 (142 págs.)
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