São Paulo, sexta, 18 de setembro de 1998

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CICLO BRESSON
Cineasta ostenta sua concepção trágica

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Se há uma palavra para definir o cinema de Robert Bresson, ela é jansenismo. Como os discípulos de Jansenius -religiosos radicais dos séculos 16 e 17, considerados heréticos pela igreja-, o francês Bresson, nascido em 1908, também é um asceta, que não admite em seus filmes nenhum efeito, facilidade, ou humor.
Mais do que tudo, no entanto, os jansenistas tinham uma concepção trágica de Deus, como um ser ausente, que abandona os filhos à própria sorte.
Algo verificável já em "As Damas do Bois de Boulogne", seu segundo trabalho e o mais antigo do ciclo promovido pela Embaixada da França, com apoio do canal Multishow, que começa hoje em São Paulo (no Espaço Unibanco de Cinema e no Estação Vitrine).
Em seguida, a mostra irá a Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio.
"As Damas" ainda traz elementos a que, mais tarde, Bresson renunciaria, como os atores profissionais (que dispensa a partir de seu quarto filme, "Um Condenado à Morte Escapou", de 1956) e os movimentos de câmera elegantes, mesmo que discretos.
Até seu último filme, "O Dinheiro", Bresson caminhou no sentido do despojamento mais completo, como se buscasse extrair das imagens apenas sua essência.
Sua radicalidade levou-o a reintroduzir um velho termo, cinematógrafo, para definir seu trabalho.
O cinema, para ele, é uma arte que imita o teatro. Já o cinematógrafo busca captar os movimentos e as propriedades dos objetos e dos seres, em lugar de registrar atores imitando pessoas que encontramos no cotidiano.
Seu método de direção é um tanto assustador. Usa apenas atores amadores (chama-os de modelos), que ensaia à exaustão, até que percam toda expressividade, de modo a criarem interpretações planas, sem nenhuma espessura ou intenção. Ou seja, sem os "vícios" teatrais dos profissionais.
O resultado é original e, não raro, soberbo. Será fácil verificá-lo em, digamos, "Pickpocket" (1959), possivelmente um dos mais belos filmes de todos os tempos (as sequências em que o protagonista bate carteiras no metrô de Paris são prodigiosas).
Mas o custo também é grande. São raríssimos os atores que seguiram carreira após trabalhar com ele -uma dessas exceções é Anne Wiazemsky, de "A Grande Testemunha", que fez, entre outros, "A Chinesa", de Jean-Luc Godard.
Esse método cruel não tem o sadismo como aspiração, mas a pureza. Em Bresson, a pureza dos personagens joga um papel central, até porque ela deve se opor a um mundo impuro na essência.
Nesse sentido, "O Processo de Joana D'Arc" é exemplar. Bresson foi aos autos do processo, acontecido no século 15, e criou uma Joana D'Arc oposta à que Dreyer havia mostrado em 1928.
Florence Carrez, que faz o papel-título, é dotada de uma beleza andrógina. Não sofre (ao contrário de Falconetti no filme de Dreyer, de 1928), responde às questões dos inquisidores com uma altivez e uma inteligência que, pensamos ao ver o filme, não é humana. Tem de vir de Deus (pois ela se acha enviada por Deus). No entanto, Deus abstém-se, silencia, permite que seja enviada à fogueira.
Não é tão diferente do Deus de "Mouchette" (1967), sobre o destino de uma adolescente (quase menina) estuprada por um caçador, e que segue obstinadamente os caminhos do mal. Ou do de "A Grande Testemunha", em que o burrico Balthazar, além de observar a errância dos humanos, ainda carrega um fardo que não é seu. À medida que sua obra evolui, encontramos um diretor sempre mais despojado e depurado. Único.
Bresson não faz, nunca fez, um cinema "na moda". Mas talvez seja um pouco apressado falar em um cinema ultrapassado. Quanto mais o mundo se enche de imagens, mais se verifica a tendência a revalorizar aqueles cineastas que buscaram o essencial na imagem.
Estão nesse caso clássicos como o dinamarquês Carl Th. Dreyer e o japonês Yasujiro Ozu, ou contemporâneos como o iraniano Abbas Kiarostami, entre outros.
De todos, Bresson é o mais austero. Seus filmes narram as desventuras da pureza num mundo infame, demoníaco. São, por isso mesmo, tão trágicos quanto apaixonantes.



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