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CICLO BRESSON
Cineasta ostenta sua concepção trágica
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Se há uma palavra para definir o
cinema de Robert Bresson, ela é
jansenismo. Como os discípulos
de Jansenius -religiosos radicais
dos séculos 16 e 17, considerados
heréticos pela igreja-, o francês
Bresson, nascido em 1908, também
é um asceta, que não admite em
seus filmes nenhum efeito, facilidade, ou humor.
Mais do que tudo, no entanto, os
jansenistas tinham uma concepção trágica de Deus, como um ser
ausente, que abandona os filhos à
própria sorte.
Algo verificável já em "As Damas
do Bois de Boulogne", seu segundo
trabalho e o mais antigo do ciclo
promovido pela Embaixada da
França, com apoio do canal Multishow, que começa hoje em São
Paulo (no Espaço Unibanco de Cinema e no Estação Vitrine).
Em seguida, a mostra irá a Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre e
Rio.
"As Damas" ainda traz elementos a que, mais tarde, Bresson renunciaria, como os atores profissionais (que dispensa a partir de
seu quarto filme, "Um Condenado
à Morte Escapou", de 1956) e os
movimentos de câmera elegantes,
mesmo que discretos.
Até seu último filme, "O Dinheiro", Bresson caminhou no sentido
do despojamento mais completo,
como se buscasse extrair das imagens apenas sua essência.
Sua radicalidade levou-o a reintroduzir um velho termo, cinematógrafo, para definir seu trabalho.
O cinema, para ele, é uma arte
que imita o teatro. Já o cinematógrafo busca captar os movimentos
e as propriedades dos objetos e dos
seres, em lugar de registrar atores
imitando pessoas que encontramos no cotidiano.
Seu método de direção é um tanto assustador. Usa apenas atores
amadores (chama-os de modelos),
que ensaia à exaustão, até que percam toda expressividade, de modo
a criarem interpretações planas,
sem nenhuma espessura ou intenção. Ou seja, sem os "vícios" teatrais dos profissionais.
O resultado é original e, não raro,
soberbo. Será fácil verificá-lo em,
digamos, "Pickpocket" (1959),
possivelmente um dos mais belos
filmes de todos os tempos (as sequências em que o protagonista
bate carteiras no metrô de Paris
são prodigiosas).
Mas o custo também é grande.
São raríssimos os atores que seguiram carreira após trabalhar com
ele -uma dessas exceções é Anne
Wiazemsky, de "A Grande Testemunha", que fez, entre outros, "A
Chinesa", de Jean-Luc Godard.
Esse método cruel não tem o sadismo como aspiração, mas a pureza. Em Bresson, a pureza dos
personagens joga um papel central, até porque ela deve se opor a
um mundo impuro na essência.
Nesse sentido, "O Processo de
Joana D'Arc" é exemplar. Bresson
foi aos autos do processo, acontecido no século 15, e criou uma Joana D'Arc oposta à que Dreyer havia mostrado em 1928.
Florence Carrez, que faz o papel-título, é dotada de uma beleza andrógina. Não sofre (ao contrário
de Falconetti no filme de Dreyer,
de 1928), responde às questões dos
inquisidores com uma altivez e
uma inteligência que, pensamos ao
ver o filme, não é humana. Tem de
vir de Deus (pois ela se acha enviada por Deus). No entanto, Deus
abstém-se, silencia, permite que
seja enviada à fogueira.
Não é tão diferente do Deus de
"Mouchette" (1967), sobre o destino de uma adolescente (quase menina) estuprada por um caçador, e
que segue obstinadamente os caminhos do mal. Ou do de "A Grande Testemunha", em que o burrico
Balthazar, além de observar a errância dos humanos, ainda carrega
um fardo que não é seu. À medida
que sua obra evolui, encontramos
um diretor sempre mais despojado
e depurado. Único.
Bresson não faz, nunca fez, um
cinema "na moda". Mas talvez seja
um pouco apressado falar em um
cinema ultrapassado. Quanto mais
o mundo se enche de imagens,
mais se verifica a tendência a revalorizar aqueles cineastas que buscaram o essencial na imagem.
Estão nesse caso clássicos como
o dinamarquês Carl Th. Dreyer e o
japonês Yasujiro Ozu, ou contemporâneos como o iraniano Abbas
Kiarostami, entre outros.
De todos, Bresson é o mais austero. Seus filmes narram as desventuras da pureza num mundo infame, demoníaco. São, por isso mesmo, tão trágicos quanto apaixonantes.
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