São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 2005

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TELEVISÃO

Minissérie escrita por Luiz Fernando Carvalho e Luís Alberto de Abreu e premiada pela APCA é lançada em livro

Maria perde as cores e ganha a palavra

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Sem as cores, desvestida do aparato cênico e da ambientação fantástica, "Hoje É Dia de Maria" chega às prateleiras com a pretensão de causar, por meio do texto, o mesmo encantamento atingido pela minissérie -que acaba de levar o grande prêmio da crítica da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) em TV.
Em forma de roteiro, o épico sertanejo escrito por Luiz Fernando Carvalho e Luís Alberto de Abreu a partir da tradição oral e das histórias populares brasileiras expõe agora sua linguagem e estrutura peculiares aos olhos do leitor-telespectador.
Carvalho está hoje escrevendo uma nova série para TV, sobre a literatura contemporânea do Brasil. A atração focará a produção regional e terá textos de Milton Hatoum, João Paulo Cuenca e Luiz Ruffato, entre outros "excluídos da mídia por razões diversas".
Leia trechos da entrevista que Carvalho, 45, concedeu à Folha.
 

Folha - "Hoje É Dia de Maria" foi considerada inovadora pela utilização de recursos múltiplos e inusitados. Entrar nela pelo roteiro permite desvesti-la de todo esse aparato. O que prevalece no texto?
Luiz Fernando Carvalho -
A energia dos contos populares. São eles a coisa, e em última instância, devem permanecer.

Folha - A minissérie promove um diálogo da tradição literária e oral do Brasil com contos de fadas tradicionais, como "Cinderela" ou "A Vendedora de Fósforos". Como foi amarrar essas referências?
Carvalho -
Nossa tradição oral é herdeira, em grande parte, da tradição clássica européia, e da popular também, centrada principalmente na península Ibérica. Essas fábulas aqui chegaram na época do descobrimento e se misturaram às lendas indígenas e com o que trouxeram outros navegantes, povos do Mediterrâneo, árabes, judeus. Depois, elas se miscigenaram com a tradição dos negros e até hoje, lá onde o Brasil é mais Brasil, elas seguem sendo recriadas e recontadas, como se fossem pequenos mitos totalmente incorporados à nossa cultura. Daí a força de "Hoje É Dia de Maria".

Folha - Ler um roteiro de cinema não é o mesmo que ler uma obra literária ou teatral. Por que publicar o texto dessa maneira?
Carvalho -
O texto foi conservado na forma em que foi filmado. Não acredito que isso trará grandes problemas para a leitura de um leigo. Mas, certamente, pode vir a somar para os jovens estudantes de comunicação, de cinema, de teatro ou televisão. Um material ao mesmo tempo técnico e lúdico. Essa foi a razão principal.

Folha - Como você concebeu Maria?
Carvalho -
Minha intenção era a de fazer com que o espectador sentisse o imenso valor dos tempos da infância real. Falo sobre o valor da infância em geral, da de Maria, da nossa, das infâncias que estão se perdendo pelas ruas. Ou seja, toda e qualquer alteração desse ciclo, me parece claro, é mesmo obra do demônio.
Seja na realidade ou na minissérie, onde aquele era apenas uma máscara, uma metáfora, quis que o espectador pudesse desmascarar seu Asmodeu. Era esse jogo com a realidade que me guiava.

Folha - O que mais o cativa no texto?
Carvalho -
Como em uma colheita, trabalhamos para devolver ao Brasil o fruto que o próprio povo semeou em meio à sua formação. Os contos populares são essa semente. Aos olhos do mundo globalizado de hoje, sinto que é um trabalho de uma responsabilidade imensa. Usando um clichê, diria até de resistência, já que não há país que resista, abrindo mão de suas memórias. Mas o desafio maior seria a tentativa de continuarmos a sonhar. Vivemos todos costurando nossas asas, nossas precárias máquinas voadoras, costurando nossos sonhos.
Como eternos Ícaros, tentamos voar alto -mas, como eternas Penélopes, tecemos e desmanchamos bordados. E essa é a sorte de alguns poucos. Isso nos alimenta e nos impede de nos tornarmos trágicos Sísifos.

Folha - Você já fez novela e minissérie. Parece ter gostado mais desse último formato, estou certa?
Carvalho -
Fazer novela requer talento específico, que não sinto possuir. Admiro quem o tenha. Meu caso é meio perdido. Minha melhor contribuição foi mesmo "Renascer", a primeira, quando me sobrava entusiasmo ou, se preferir, ingenuidade. Depois fui minguando. Quando veio "O Rei do Gado", que a todos era sinônimo de sucesso, me soou como um doloroso fracasso.

Folha - Evocar um tema sertanejo, que faz uma oposição clara entre vida no campo e vida na cidade, num veículo popular como a TV, acaba tendo um efeito de tomar o partido do homem do campo. Acredita que a minissérie pode ser lida/vista como uma fábula anticapitalista para as massas?
Carvalho -
Sem dúvida buscamos alcançar uma reflexão sobre a idéia de felicidade que nos é vendida nas cidades grandes. Apontei minha câmera para o consumismo e também para todo o tipo de inversão de valores que ele provoca nas sociedades ditas modernas.
Mesmo assim, "Hoje É Dia de Maria" também não me parece fazer uma apologia do campo, mas sim da esperança e da coragem que cada um de nós traz até o dia em que, movidos por dores e batalhas, tudo parece que se perde. Não vamos ficar aqui pegados aos mitos, afinal eles existem para nos explicar a realidade, e é aí que mora o perigo, onde os Asmodeus lambem os beiços. É na realidade! Talvez tenha sido isso o que gostaríamos de dizer, que a realidade, sempre com seu final invertido, nos ilude, pois sempre começa como um conto de fadas.


Hoje É Dia de Maria
   
Autores: Luiz Fernando Carvalho e Luís Alberto de Abreu
Editora: Globo
Quanto: R$ 38 (591 págs.)



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