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TELEVISÃO
Minissérie escrita por Luiz Fernando Carvalho e Luís Alberto de Abreu e premiada pela APCA é lançada em livro
Maria perde as cores e ganha a palavra
SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN
Sem as cores, desvestida do aparato cênico e da ambientação fantástica, "Hoje É Dia de Maria"
chega às prateleiras com a pretensão de causar, por meio do texto,
o mesmo encantamento atingido
pela minissérie -que acaba de levar o grande prêmio da crítica da
APCA (Associação Paulista de
Críticos de Arte) em TV.
Em forma de roteiro, o épico
sertanejo escrito por Luiz Fernando Carvalho e Luís Alberto de
Abreu a partir da tradição oral e
das histórias populares brasileiras
expõe agora sua linguagem e estrutura peculiares aos olhos do
leitor-telespectador.
Carvalho está hoje escrevendo
uma nova série para TV, sobre a
literatura contemporânea do Brasil. A atração focará a produção
regional e terá textos de Milton
Hatoum, João Paulo Cuenca e
Luiz Ruffato, entre outros "excluídos da mídia por razões diversas".
Leia trechos da entrevista que
Carvalho, 45, concedeu à Folha.
Folha - "Hoje É Dia de Maria" foi
considerada inovadora pela utilização de recursos múltiplos e inusitados. Entrar nela pelo roteiro permite desvesti-la de todo esse aparato. O que prevalece no texto?
Luiz Fernando Carvalho - A energia dos contos populares. São eles
a coisa, e em última instância, devem permanecer.
Folha - A minissérie promove um
diálogo da tradição literária e oral
do Brasil com contos de fadas tradicionais, como "Cinderela" ou "A
Vendedora de Fósforos". Como foi
amarrar essas referências?
Carvalho - Nossa tradição oral é
herdeira, em grande parte, da tradição clássica européia, e da popular também, centrada principalmente na península Ibérica.
Essas fábulas aqui chegaram na
época do descobrimento e se misturaram às lendas indígenas e
com o que trouxeram outros navegantes, povos do Mediterrâneo,
árabes, judeus. Depois, elas se
miscigenaram com a tradição dos
negros e até hoje, lá onde o Brasil é
mais Brasil, elas seguem sendo recriadas e recontadas, como se fossem pequenos mitos totalmente
incorporados à nossa cultura. Daí
a força de "Hoje É Dia de Maria".
Folha - Ler um roteiro de cinema
não é o mesmo que ler uma obra literária ou teatral. Por que publicar
o texto dessa maneira?
Carvalho - O texto foi conservado na forma em que foi filmado.
Não acredito que isso trará grandes problemas para a leitura de
um leigo. Mas, certamente, pode
vir a somar para os jovens estudantes de comunicação, de cinema, de teatro ou televisão. Um
material ao mesmo tempo técnico
e lúdico. Essa foi a razão principal.
Folha - Como você concebeu Maria?
Carvalho - Minha intenção era a
de fazer com que o espectador
sentisse o imenso valor dos tempos da infância real. Falo sobre o
valor da infância em geral, da de
Maria, da nossa, das infâncias que
estão se perdendo pelas ruas. Ou
seja, toda e qualquer alteração
desse ciclo, me parece claro, é
mesmo obra do demônio.
Seja na realidade ou na minissérie, onde aquele era apenas uma
máscara, uma metáfora, quis que
o espectador pudesse desmascarar seu Asmodeu. Era esse jogo
com a realidade que me guiava.
Folha - O que mais o cativa no texto?
Carvalho - Como em uma colheita, trabalhamos para devolver
ao Brasil o fruto que o próprio povo semeou em meio à sua formação. Os contos populares são essa
semente. Aos olhos do mundo
globalizado de hoje, sinto que é
um trabalho de uma responsabilidade imensa. Usando um clichê,
diria até de resistência, já que não
há país que resista, abrindo mão
de suas memórias. Mas o desafio
maior seria a tentativa de continuarmos a sonhar. Vivemos todos costurando nossas asas, nossas precárias máquinas voadoras,
costurando nossos sonhos.
Como eternos Ícaros, tentamos
voar alto -mas, como eternas
Penélopes, tecemos e desmanchamos bordados. E essa é a sorte de
alguns poucos. Isso nos alimenta
e nos impede de nos tornarmos
trágicos Sísifos.
Folha - Você já fez novela e minissérie. Parece ter gostado mais desse último formato, estou certa?
Carvalho - Fazer novela requer
talento específico, que não sinto
possuir. Admiro quem o tenha.
Meu caso é meio perdido. Minha
melhor contribuição foi mesmo
"Renascer", a primeira, quando
me sobrava entusiasmo ou, se
preferir, ingenuidade. Depois fui
minguando. Quando veio "O Rei
do Gado", que a todos era sinônimo de sucesso, me soou como um
doloroso fracasso.
Folha - Evocar um tema sertanejo, que faz uma oposição clara entre vida no campo e vida na cidade,
num veículo popular como a TV,
acaba tendo um efeito de tomar o
partido do homem do campo. Acredita que a minissérie pode ser lida/vista como uma fábula anticapitalista para as massas?
Carvalho - Sem dúvida buscamos alcançar uma reflexão sobre
a idéia de felicidade que nos é vendida nas cidades grandes. Apontei
minha câmera para o consumismo e também para todo o tipo de
inversão de valores que ele provoca nas sociedades ditas modernas.
Mesmo assim, "Hoje É Dia de
Maria" também não me parece
fazer uma apologia do campo,
mas sim da esperança e da coragem que cada um de nós traz até o
dia em que, movidos por dores e
batalhas, tudo parece que se perde. Não vamos ficar aqui pegados
aos mitos, afinal eles existem para
nos explicar a realidade, e é aí que
mora o perigo, onde os Asmodeus lambem os beiços. É na realidade! Talvez tenha sido isso o que
gostaríamos de dizer, que a realidade, sempre com seu final invertido, nos ilude, pois sempre começa como um conto de fadas.
Hoje É Dia de Maria
Autores: Luiz Fernando Carvalho e Luís
Alberto de Abreu
Editora: Globo
Quanto: R$ 38 (591 págs.)
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