São Paulo, sexta, 18 de dezembro de 1998

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"NÓ NA GARGANTA" CRÍTICA
Jordan dá à luz seu melhor monstro

da Equipe de Articulistas

Estranha sina, a do filme "The Butcher Boy" (O Garoto Açougueiro), de Neil Jordan.
Primeiro ameaçaram lançá-lo no Brasil só em vídeo, com o horrendo título "Fúria Inocente". A grita da imprensa foi tão grande que trocaram o título e o veículo: agora ele sai das locadoras para as telas e se chama "Nó na Garganta".
Muito mais estranho e escabroso, porém, é o destino do protagonista do filme, o menino Francie Brady (o estreante Eamonn Owens, que reapareceria em "O General", de John Boorman).
Numa cidadezinha irlandesa, no início dos anos 60, ele vive uma infância terrível: o pai (Stephen Rea) é alcoólatra, a mãe (Aisling O'Sullivan) é louca, a vizinhança é hostil, a família não tem um tostão.
Para sobreviver a esse cenário de desgraças, Francie cria seu mundo imaginário com os elementos que tem à mão: os noticiários sobre John Kennedy e a "ameaça comunista", as viagens espaciais, os filmes "B" de ficção científica, a iconografia católica etc.
O primeiro mérito do diretor Neil Jordan ao adaptar o livro homônimo de Patrick McCabe foi o de trabalhar na fronteira entre esse mundo interno de Francie e a "realidade" à sua volta.
No trânsito entre o imaginário e o real, a mãe odiosa (Fiona Shaw) de um garoto da vizinhança pode facilmente se transformar numa extraterrestre disfarçada, ou numa comunista enrustida.
O que Neil Jordan narra, no fundo, é a formação de um indivíduo sem superego, um destino no qual estão abertas as portas para a violência sem freios morais ou sociais. "Nasce um Monstro" talvez fosse um título mais adequado que "Nó na Garganta".
A segunda façanha do cineasta foi rechaçar ao mesmo tempo o sentimentalismo e o julgamento moral, por meio de um doloroso distanciamento, em que o espectador não é solicitado a apiedar-se do personagem nem tampouco incitado a odiá-lo.
Dois elementos são decisivos na conquista desse enfoque dramático: o uso da locução em "off", que mantém o tom jocoso mesmo quando tudo se encaminha para a tragédia sangrenta que justifica o título original, e a atuação excepcional do menino Eamonn Owens.
Uma das cenas mais inspiradas do filme é a aparição da Virgem Maria (interpretada pela cantora pop Sinead O'Connor) ao protagonista. O modo como ela aparece e, sobretudo, a atuação ambígua de Owens permitem todo tipo de interpretação: fingimento, delírio ou verdadeira epifania.
Por ousadias desse tipo, pela recusa da catarse apaziguadora, pela construção diabólica de um universo esquizofrênico, "Nó na Garganta" é talvez o mais sutil e perturbador dos filmes do irlandês Neil Jordan. Perto dele, "Traídos pelo Desejo" e "Michael Collins" são obras de compromisso entre a militância política e o interesse comercial. (JOSÉ GERALDO COUTO)


Filme: Nó na Garganta Direção: Neil Jordan Com: Eamonn Owens, Stephen Rea, Fiona Shaw, Sinead O'Connor Quando: estréia hoje, nos cines Cinearte 1 e Estação Lumiere 1





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