|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"NÓ NA GARGANTA" CRÍTICA
Jordan dá à luz seu melhor monstro
da Equipe de Articulistas
Estranha sina, a do filme "The
Butcher Boy" (O Garoto Açougueiro), de Neil Jordan.
Primeiro ameaçaram lançá-lo no
Brasil só em vídeo, com o horrendo título "Fúria Inocente". A grita
da imprensa foi tão grande que
trocaram o título e o veículo: agora
ele sai das locadoras para as telas e
se chama "Nó na Garganta".
Muito mais estranho e escabroso, porém, é o destino do protagonista do filme, o menino Francie
Brady (o estreante Eamonn
Owens, que reapareceria em "O
General", de John Boorman).
Numa cidadezinha irlandesa, no
início dos anos 60, ele vive uma infância terrível: o pai (Stephen Rea)
é alcoólatra, a mãe (Aisling O'Sullivan) é louca, a vizinhança é hostil,
a família não tem um tostão.
Para sobreviver a esse cenário de
desgraças, Francie cria seu mundo
imaginário com os elementos que
tem à mão: os noticiários sobre
John Kennedy e a "ameaça comunista", as viagens espaciais, os filmes "B" de ficção científica, a iconografia católica etc.
O primeiro mérito do diretor
Neil Jordan ao adaptar o livro homônimo de Patrick McCabe foi o
de trabalhar na fronteira entre esse
mundo interno de Francie e a "realidade" à sua volta.
No trânsito entre o imaginário e
o real, a mãe odiosa (Fiona Shaw)
de um garoto da vizinhança pode
facilmente se transformar numa
extraterrestre disfarçada, ou numa
comunista enrustida.
O que Neil Jordan narra, no fundo, é a formação de um indivíduo
sem superego, um destino no qual
estão abertas as portas para a violência sem freios morais ou sociais.
"Nasce um Monstro" talvez fosse
um título mais adequado que "Nó
na Garganta".
A segunda façanha do cineasta
foi rechaçar ao mesmo tempo o
sentimentalismo e o julgamento
moral, por meio de um doloroso
distanciamento, em que o espectador não é solicitado a apiedar-se
do personagem nem tampouco incitado a odiá-lo.
Dois elementos são decisivos na
conquista desse enfoque dramático: o uso da locução em "off", que
mantém o tom jocoso mesmo
quando tudo se encaminha para a
tragédia sangrenta que justifica o
título original, e a atuação excepcional do menino Eamonn Owens.
Uma das cenas mais inspiradas
do filme é a aparição da Virgem
Maria (interpretada pela cantora
pop Sinead O'Connor) ao protagonista. O modo como ela aparece e,
sobretudo, a atuação ambígua de
Owens permitem todo tipo de interpretação: fingimento, delírio ou
verdadeira epifania.
Por ousadias desse tipo, pela recusa da catarse apaziguadora, pela
construção diabólica de um universo esquizofrênico, "Nó na Garganta" é talvez o mais sutil e perturbador dos filmes do irlandês
Neil Jordan. Perto dele, "Traídos
pelo Desejo" e "Michael Collins"
são obras de compromisso entre a
militância política e o interesse comercial.
(JOSÉ GERALDO COUTO)
Filme: Nó na Garganta
Direção: Neil Jordan
Com: Eamonn Owens, Stephen Rea, Fiona
Shaw, Sinead O'Connor
Quando: estréia hoje, nos cines Cinearte 1 e
Estação Lumiere 1
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|