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LITERATURA
Eterno cotado, Vargas Llosa esnoba o Nobel
CYNARA MENEZES
especial para a Folha
Eterno "nobelizável", Mario
Vargas Llosa, 63, foi derrotado
pelo alemão -não por Günter
Grass, que levou o prêmio do ano
passado, mas pela língua. Depois
de passar um ano em Berlim tentando aprender o idioma, confessa que isso é "quase inalcançável".
O liberal peruano, aliás, esnobou o socialista Grass, ganhador
do prêmio máximo da literatura
mundial. "Acho que "O Tambor" é
seu grande romance. Depois escreveu muito, mas muito menos
interessante que ao princípio",
disse, em entrevista à Folha, por
telefone.
O escritor falou a propósito do relançamento de seu livro "A Guerra do Fim do Mundo", que volta às livrarias exatos
20 anos depois que ele esteve no
sertão da Bahia para comparar
sua ficção, inspirada pela leitura
de "Os Sertões", de Euclides da
Cunha, com a realidade. Também
sai pela primeira vez por aqui "Os
Filhotes", de 67.
"A Guerra do Fim do Mundo" é
sua versão da guerra de Canudos,
curiosamente vista pelo olhar
"realista fantástico" do peruano
que passou parte da infância na
Bolívia, se naturalizou espanhol
em 93, vive em Londres e atualmente está em Washington dando aulas.
Vargas Llosa falou ainda sobre
seu interesse pelo erotismo -exposto em seu último livro, "Os
Cadernos de Dom Rigoberto"
(97)- e um pouco, é claro, de política: admitiu, não sem certa ironia, que o presidente Fujimori,
seu rival na eleição para a presidência peruana em 90, é muito esperto.
Também anunciou, com exclusividade, ter acabado recentemente seu mais novo romance,
"La Fiesta del Chivo" ("A Festa do
Bode"), uma ficção de 600 páginas sobre o assassinato do ditador
dominicano Rafael Trujillo, em
1961, que lhe custou três anos de
trabalho. Leia a seguir trechos da
entrevista.
Folha - Faz exatamente 20
anos que o sr. esteve no Nordeste brasileiro para a preparação
de "A Guerra do Fim do Mundo". O que ficou de sua passagem por lá?
Mario Vargas Llosa - Eu já estava há um ano e meio trabalhando
no romance quando fui para lá.
Estive um mês, acho, e depois vim
a Washington, onde o terminei.
Foi uma experiência fascinante.
Por um lado, eu já tinha toda uma
idéia feita por meio das leituras e,
por outro, também da fantasia. Já
tinha inventado para mim um
sertão, um Canudos, sertanejos.
Então, comparar a realidade com
o que eu tinha inventado foi incrível. A verdade é que foi uma das
experiências mais enriquecedoras
e mais emocionantes que tive.
Folha - Por quê?
Vargas Llosa - Em primeiro lugar, me impressionou muitíssimo
a beleza da paisagem, uma paisagem única que eu não vi em nenhuma outra parte. E me impressionou muito que o interior da
Bahia tivesse se conservado tão similar ao que foi na época da guerra de Canudos, quando Euclides
da Cunha escreveu "Os Sertões".
As pessoas ainda recordavam e
falavam muito de Canudos, todo
mundo tinha parentes que estiveram ali ou conhecido contemporâneos da guerra. Tudo isso formava parte da memória coletiva e
me ajudou enormemente.
Folha - E não voltou nunca ao
Nordeste?
Vargas Llosa - Nunca. Espero
voltar antes de morrer. Sei que se
foi modernizando, isso é inevitável. Mas espero que se tenham
conservado algumas tradições,
porque o que a região tinha era
uma personalidade muito marcante, muito diferenciada. Impressionaram-me muito, por
exemplo, os cantadores de cordel,
uma coisa tão bonita.
Folha - A pobreza continua
igual por lá.
Vargas Llosa - Sim, eu sei. A pobreza era, claro, tremenda. Mas
era uma pobreza levada com muita dignidade, não era uma dessas
pobrezas que aniquilam, que derrotam o ser humano. As pessoas
mantinham um amor à vida.
Folha - O sr. foi morar em Berlim para aprender alemão. Conseguiu?
Vargas Llosa - Bom... Aprendi a
ler, porque falar alemão é uma
coisa quase inalcançável. Posso
ler com dificuldade, sem desfrutar da língua, mas já posso ler.
Folha - Leu o novo Nobel, Günter Grass?
Vargas Llosa - Sim, em um dos
meus livros tenho um ensaio que
escrevi sobre "O Tambor" (Record), que é um grande romance.
Acho que é seu grande romance.
As últimas coisas me interessam
muito menos, creio que escreveu
seus melhores romances na juventude, "O Tambor", "Anos de
Cão" (Rocco). Acho que esses foram realmente os grandes livros
dele. Depois escreveu muito, mas
acho que muito menos interessante que ao princípio.
Folha - Em alemão?
Vargas Llosa - Não tentei, não
creio que seja muito fácil, porque
é verbal, muito expressivo, de frases enormes. Não acho que seja
fácil ler Günter Grass em alemão.
Folha - O sr. agora está nos Estados Unidos. Vive como um
"globetrotter"?
Vargas Llosa - Este é meu destino. Sempre digo "vou ficar quieto
agora", mas sempre ando saltando pelo mundo. Estou aqui esse
semestre porque estou dando um
curso na Universidade de Georgetown. É uma experiência agradável, é uma universidade pequena,
mas de bom nível, com muito interesse na América Latina, o que
hoje, nos EUA, é muito frequente.
Folha - Por que seu romance
"Os Filhotes" só está sendo publicado agora no Brasil?
Vargas Llosa - Acho que é um
texto muito difícil de traduzir, talvez o mais difícil de traduzir que
escrevi. É uma história que deve
entrar pelos ouvidos tanto quanto
pelos olhos. Dos textos que escrevi, este é o que mais reescrevi.
Sempre pensei, desde que comecei a escrevê-lo, que a única maneira com a qual podia vencer a
resistência do leitor era por meio
de uma musicalidade, de um ritmo, de uma forma um pouco encantatória que distraísse, que mareasse o leitor.
Folha - O sr. mistura vários
tempos verbais nesse romance,
não é?
Vargas Llosa - Sim, está narrado de uma maneira coral, por um
grupo de meninos do bairro ao
qual pertence o protagonista. Mas
essa voz plural às vezes se torna
individual, porque cada um dos
personagens de repente fala em
primeira pessoa e logo volta outra
vez a esta espécie de coro grego. É
um texto que me custou um
imenso trabalho para encontrar
justamente essa forma em que o
coletivo e o individual estivessem
permanentemente alternando-se
e, além do mais, para encontrar
um tipo de frase musical. Quer dizer, é uma história mais cantada
que contada. Por isso teve muitos
problemas com as traduções.
Folha - É seu texto favorito?
Vargas Llosa - Custou-me muito trabalho, então a pessoa é sempre um pouco masoquista e tem
muito carinho ao que mais trabalho lhe custa, não?
Folha - Não lhe parece engraçado que a tecnologia hoje talvez possa mudar todo o destino
do protagonista, um castrado
na infância?
Vargas Llosa - Hoje em dia,
sim, não há mais histórias como a
de "Piroquinha" Cuéllar. Veja o
que aconteceu com John Wayne
Bobbitt... É uma história que ficou
um pouco anacrônica, não? Mas
embora no romance seja uma
castração física, o mais importante é a castração simbólica. Que esse garoto fique marginalizado,
que fique convertido em outro.
"Piroquinha" Cuéllar é um discriminado, de certa maneira é a história daquele que não se integra,
do que é expulso do grupo, da comunidade, de quem é obrigado a
viver à margem.
Folha - O sr. está escrevendo
algo atualmente?
Vargas Llosa - Acabo de escrever um romance, "A Festa do Bode", situada na República Dominicana, na época final do ditador
Trujillo, que tem a ver com a
conspiração para matá-lo. É um
romance que tem um contexto
político, mas que usa uma ambientação do tipo histórico, um
pouco na linha de "Conversa na
Catedral", "A Guerra do Fim do
Mundo". Um romance com uma
certa dimensão histórica.
Folha - O sr. escreve muito, um
livro a cada três anos, não?
Vargas Llosa - Sim, esta é minha vida. É a frase de Flaubert que
eu compartilho totalmente: escrever é minha maneira de viver.
Folha - Onde encontra tanta
vontade?
Vargas Llosa - É o que gosto de
fazer na vida, ler e escrever. Não
só literatura, faço também jornalismo, ensino. Não entenderia outra forma de viver que não escrevendo. Tenho muitos projetos, o
que não tenho é tempo suficiente
para escrever todos. Gostaria que
o dia tivesse mais horas. Espero
morrer com a pluma na mão.
Folha - Planeja escrever algo
mais sobre erotismo, depois dos
"Cadernos de Dom Rigoberto"?
Vargas Llosa - Um dos projetos
que tenho guardados é justamente uma terceira história (a outra é
"Elogio da Madrasta") com essa
família tão peculiar, Dom Rigoberto, Dona Lucrécia. Espero ter
tempo e energia para isso.
Folha - Seu interesse pelo erotismo começou agora?
Vargas Llosa - Não, sempre me
interessou, mas o erotismo clássico, que é quando produziu grande literatura, grande arte. Na época moderna o erotismo empobreceu muito do ponto de vista artístico, transformou-se em uma subliteratura, uma subarte. Eu escrevi a história de "Elogio da Madrasta" um pouco para desafiar
essa tendência do erotismo como
algo vulgar, como algo que se torna pornografia. Creio que a grande tradição clássica do erotismo é
uma tradição de grande criatividade, rigor formal e ao mesmo
tempo de uma atitude muito insubmissa, muito rebelde frente ao
estabelecido. Esse é o erotismo
que me interessa.
Folha - E a política, nunca mais
outra vez?
Vargas Llosa - Não, política
profissional nunca mais. Sempre
disse que a política foi uma experiência puramente transitória. Eu
participo do debate político, escrevo constantemente sobre isso,
creio que é muito importante,
acho que um intelectual tem obrigação moral de participar na vida
cívica e isso eu faço agora como
escritor e fiz antes de participar da
política. Não tenho vocação.
Folha - Não tem vontade de
voltar a viver no Peru?
Vargas Llosa - Sim, espero voltar, espero que um dia a ditadura
termine, que o país volte a ser democrático e aí eu voltarei. Com a
ditadura não tem sentido, não
posso ir lá porque me vejo em
uma situação impossível.
Folha - O presidente (Alberto)
Fujimori parece ser bastante esperto, não?
Vargas Llosa - Claro, já está há
dez anos no poder e quer ficar por
15, deu um golpe de Estado perdoado pela comunidade internacional -que não quis se dar conta disso-, sem dúvida é muito
esperto.
Livros: A Guerra do Fim do Mundo e Os Filhotes
Autor: Mario Vargas Llosa
Tradutores: Remy Gorga Filho e Sérgio
Molina, respectivamente
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (706 págs.) e R$ 17 (91
págs)
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