São Paulo, Quarta-feira, 19 de Janeiro de 2000


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LITERATURA
Eterno cotado, Vargas Llosa esnoba o Nobel

CYNARA MENEZES
especial para a Folha

Eterno "nobelizável", Mario Vargas Llosa, 63, foi derrotado pelo alemão -não por Günter Grass, que levou o prêmio do ano passado, mas pela língua. Depois de passar um ano em Berlim tentando aprender o idioma, confessa que isso é "quase inalcançável".
O liberal peruano, aliás, esnobou o socialista Grass, ganhador do prêmio máximo da literatura mundial. "Acho que "O Tambor" é seu grande romance. Depois escreveu muito, mas muito menos interessante que ao princípio", disse, em entrevista à Folha, por telefone.
O escritor falou a propósito do relançamento de seu livro "A Guerra do Fim do Mundo", que volta às livrarias exatos 20 anos depois que ele esteve no sertão da Bahia para comparar sua ficção, inspirada pela leitura de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, com a realidade. Também sai pela primeira vez por aqui "Os Filhotes", de 67.
"A Guerra do Fim do Mundo" é sua versão da guerra de Canudos, curiosamente vista pelo olhar "realista fantástico" do peruano que passou parte da infância na Bolívia, se naturalizou espanhol em 93, vive em Londres e atualmente está em Washington dando aulas.
Vargas Llosa falou ainda sobre seu interesse pelo erotismo -exposto em seu último livro, "Os Cadernos de Dom Rigoberto" (97)- e um pouco, é claro, de política: admitiu, não sem certa ironia, que o presidente Fujimori, seu rival na eleição para a presidência peruana em 90, é muito esperto.
Também anunciou, com exclusividade, ter acabado recentemente seu mais novo romance, "La Fiesta del Chivo" ("A Festa do Bode"), uma ficção de 600 páginas sobre o assassinato do ditador dominicano Rafael Trujillo, em 1961, que lhe custou três anos de trabalho. Leia a seguir trechos da entrevista.

Folha - Faz exatamente 20 anos que o sr. esteve no Nordeste brasileiro para a preparação de "A Guerra do Fim do Mundo". O que ficou de sua passagem por lá?
Mario Vargas Llosa -
Eu já estava há um ano e meio trabalhando no romance quando fui para lá. Estive um mês, acho, e depois vim a Washington, onde o terminei. Foi uma experiência fascinante. Por um lado, eu já tinha toda uma idéia feita por meio das leituras e, por outro, também da fantasia. Já tinha inventado para mim um sertão, um Canudos, sertanejos. Então, comparar a realidade com o que eu tinha inventado foi incrível. A verdade é que foi uma das experiências mais enriquecedoras e mais emocionantes que tive.

Folha - Por quê?
Vargas Llosa -
Em primeiro lugar, me impressionou muitíssimo a beleza da paisagem, uma paisagem única que eu não vi em nenhuma outra parte. E me impressionou muito que o interior da Bahia tivesse se conservado tão similar ao que foi na época da guerra de Canudos, quando Euclides da Cunha escreveu "Os Sertões". As pessoas ainda recordavam e falavam muito de Canudos, todo mundo tinha parentes que estiveram ali ou conhecido contemporâneos da guerra. Tudo isso formava parte da memória coletiva e me ajudou enormemente.

Folha - E não voltou nunca ao Nordeste?
Vargas Llosa -
Nunca. Espero voltar antes de morrer. Sei que se foi modernizando, isso é inevitável. Mas espero que se tenham conservado algumas tradições, porque o que a região tinha era uma personalidade muito marcante, muito diferenciada. Impressionaram-me muito, por exemplo, os cantadores de cordel, uma coisa tão bonita.

Folha - A pobreza continua igual por lá.
Vargas Llosa -
Sim, eu sei. A pobreza era, claro, tremenda. Mas era uma pobreza levada com muita dignidade, não era uma dessas pobrezas que aniquilam, que derrotam o ser humano. As pessoas mantinham um amor à vida.

Folha - O sr. foi morar em Berlim para aprender alemão. Conseguiu?
Vargas Llosa -
Bom... Aprendi a ler, porque falar alemão é uma coisa quase inalcançável. Posso ler com dificuldade, sem desfrutar da língua, mas já posso ler.

Folha - Leu o novo Nobel, Günter Grass?
Vargas Llosa -
Sim, em um dos meus livros tenho um ensaio que escrevi sobre "O Tambor" (Record), que é um grande romance. Acho que é seu grande romance. As últimas coisas me interessam muito menos, creio que escreveu seus melhores romances na juventude, "O Tambor", "Anos de Cão" (Rocco). Acho que esses foram realmente os grandes livros dele. Depois escreveu muito, mas acho que muito menos interessante que ao princípio.

Folha - Em alemão?
Vargas Llosa -
Não tentei, não creio que seja muito fácil, porque é verbal, muito expressivo, de frases enormes. Não acho que seja fácil ler Günter Grass em alemão.

Folha - O sr. agora está nos Estados Unidos. Vive como um "globetrotter"?
Vargas Llosa -
Este é meu destino. Sempre digo "vou ficar quieto agora", mas sempre ando saltando pelo mundo. Estou aqui esse semestre porque estou dando um curso na Universidade de Georgetown. É uma experiência agradável, é uma universidade pequena, mas de bom nível, com muito interesse na América Latina, o que hoje, nos EUA, é muito frequente.

Folha - Por que seu romance "Os Filhotes" só está sendo publicado agora no Brasil?
Vargas Llosa -
Acho que é um texto muito difícil de traduzir, talvez o mais difícil de traduzir que escrevi. É uma história que deve entrar pelos ouvidos tanto quanto pelos olhos. Dos textos que escrevi, este é o que mais reescrevi. Sempre pensei, desde que comecei a escrevê-lo, que a única maneira com a qual podia vencer a resistência do leitor era por meio de uma musicalidade, de um ritmo, de uma forma um pouco encantatória que distraísse, que mareasse o leitor.

Folha - O sr. mistura vários tempos verbais nesse romance, não é?
Vargas Llosa -
Sim, está narrado de uma maneira coral, por um grupo de meninos do bairro ao qual pertence o protagonista. Mas essa voz plural às vezes se torna individual, porque cada um dos personagens de repente fala em primeira pessoa e logo volta outra vez a esta espécie de coro grego. É um texto que me custou um imenso trabalho para encontrar justamente essa forma em que o coletivo e o individual estivessem permanentemente alternando-se e, além do mais, para encontrar um tipo de frase musical. Quer dizer, é uma história mais cantada que contada. Por isso teve muitos problemas com as traduções.

Folha - É seu texto favorito?
Vargas Llosa -
Custou-me muito trabalho, então a pessoa é sempre um pouco masoquista e tem muito carinho ao que mais trabalho lhe custa, não?

Folha - Não lhe parece engraçado que a tecnologia hoje talvez possa mudar todo o destino do protagonista, um castrado na infância?
Vargas Llosa -
Hoje em dia, sim, não há mais histórias como a de "Piroquinha" Cuéllar. Veja o que aconteceu com John Wayne Bobbitt... É uma história que ficou um pouco anacrônica, não? Mas embora no romance seja uma castração física, o mais importante é a castração simbólica. Que esse garoto fique marginalizado, que fique convertido em outro. "Piroquinha" Cuéllar é um discriminado, de certa maneira é a história daquele que não se integra, do que é expulso do grupo, da comunidade, de quem é obrigado a viver à margem.

Folha - O sr. está escrevendo algo atualmente?
Vargas Llosa -
Acabo de escrever um romance, "A Festa do Bode", situada na República Dominicana, na época final do ditador Trujillo, que tem a ver com a conspiração para matá-lo. É um romance que tem um contexto político, mas que usa uma ambientação do tipo histórico, um pouco na linha de "Conversa na Catedral", "A Guerra do Fim do Mundo". Um romance com uma certa dimensão histórica.

Folha - O sr. escreve muito, um livro a cada três anos, não?
Vargas Llosa -
Sim, esta é minha vida. É a frase de Flaubert que eu compartilho totalmente: escrever é minha maneira de viver.

Folha - Onde encontra tanta vontade?
Vargas Llosa -
É o que gosto de fazer na vida, ler e escrever. Não só literatura, faço também jornalismo, ensino. Não entenderia outra forma de viver que não escrevendo. Tenho muitos projetos, o que não tenho é tempo suficiente para escrever todos. Gostaria que o dia tivesse mais horas. Espero morrer com a pluma na mão.

Folha - Planeja escrever algo mais sobre erotismo, depois dos "Cadernos de Dom Rigoberto"?
Vargas Llosa -
Um dos projetos que tenho guardados é justamente uma terceira história (a outra é "Elogio da Madrasta") com essa família tão peculiar, Dom Rigoberto, Dona Lucrécia. Espero ter tempo e energia para isso.

Folha - Seu interesse pelo erotismo começou agora?
Vargas Llosa -
Não, sempre me interessou, mas o erotismo clássico, que é quando produziu grande literatura, grande arte. Na época moderna o erotismo empobreceu muito do ponto de vista artístico, transformou-se em uma subliteratura, uma subarte. Eu escrevi a história de "Elogio da Madrasta" um pouco para desafiar essa tendência do erotismo como algo vulgar, como algo que se torna pornografia. Creio que a grande tradição clássica do erotismo é uma tradição de grande criatividade, rigor formal e ao mesmo tempo de uma atitude muito insubmissa, muito rebelde frente ao estabelecido. Esse é o erotismo que me interessa.

Folha - E a política, nunca mais outra vez?
Vargas Llosa -
Não, política profissional nunca mais. Sempre disse que a política foi uma experiência puramente transitória. Eu participo do debate político, escrevo constantemente sobre isso, creio que é muito importante, acho que um intelectual tem obrigação moral de participar na vida cívica e isso eu faço agora como escritor e fiz antes de participar da política. Não tenho vocação.

Folha - Não tem vontade de voltar a viver no Peru?
Vargas Llosa -
Sim, espero voltar, espero que um dia a ditadura termine, que o país volte a ser democrático e aí eu voltarei. Com a ditadura não tem sentido, não posso ir lá porque me vejo em uma situação impossível.

Folha - O presidente (Alberto) Fujimori parece ser bastante esperto, não?
Vargas Llosa -
Claro, já está há dez anos no poder e quer ficar por 15, deu um golpe de Estado perdoado pela comunidade internacional -que não quis se dar conta disso-, sem dúvida é muito esperto.


Livros: A Guerra do Fim do Mundo e Os Filhotes Autor: Mario Vargas Llosa Tradutores: Remy Gorga Filho e Sérgio Molina, respectivamente Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 39 (706 págs.) e R$ 17 (91 págs)

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