São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MÔNICA BERGAMO

Ana Ottoni/Folha Imagem
Grupo percorre a cidade em Kombis da prefeitura; entre os mais queridos da turma, um fugitivo da Febem, que seria descoberto no dia seguinte

Baile infantil

Numa iniciativa para "melhorar a auto-estima das crianças", Serra acaba recebendo um fugitivo da Febem em seu gabinete

T.S., 16, de braços cruzados, está impaciente na sala de espera do gabinete do prefeito José Serra. "O Motosserra vai demorar muito?", questiona. O garoto, de camiseta regata e colar de sementes, está cansado de esperar. Com um grupo de outras 25 crianças carentes, ele foi escalado para visitar o prefeito em seu local de trabalho.

 

A idéia era colocar as crianças em três Kombis, levar para o gabinete, subir até os jardins suspensos do edifício Matarazzo, visitar a Oca, no Ibirapuera, e entregá-las de volta para o Centro de Referência da Criança e do Adolescente de Santana, onde vivem. Muitas são crianças de rua. Outras de orfanatos ou foram tiradas da família pelo Conselho Tutelar. Aguardam no centro o destino que será dado a elas.
 

Tudo no passeio era para ser lindo, divino e maravilhoso. Não fosse por um detalhe: T.S. era fugitivo da Febem. O garoto, reconheça-se, deu um baile: não apenas conseguiu burlar a segurança da instituição como foi acolhido por um centro de referência oficial da prefeitura e, incluído no tour, acabou sentado no sofá de Serra.
 

A condição de fugitivo de T.S., ignorada por Serra, só foi descoberta no dia seguinte à visita, quando o próprio T.S. fez a confidência a uma psicóloga do centro e a PM foi buscá-lo para levá-lo de volta à Febem. A administração agora estuda pedir sua liberdade assistida para que ele volte ao centro de referência.
 

T.S. foi embora chorando muito. Com 1m80, ele era visto pelo resto da turma como o "paizão". Y.R., 6, por exemplo, não desgrudava de T.S. durante o passeio.
 

Às 16h12, com duas horas de atraso, as portas do gabinete se abrem. Em fila, as crianças entram na sala. O pequeno Y.R. chega perto do prefeito. "Moço, o senhor é "mó" rico, hein?" "Não, não", diz Serra. "Nada do que está aqui é meu".
 

"Tio, é verdade que o senhor dorme aqui?", pergunta a garota A.L., 17. "Não dá pra ficar dormindo, eu trabalho muito", desconversa o prefeito (há alguns meses, Serra se deixou fotografar por um jornal ao lado de uma cama que mandou instalar no gabinete, para repousar à tarde).
 

"Me dá um DVD?", pede um dos garotos. "Fale com o Floriano [Pesaro, secretário de Assistência e Desenvolvimento Social]", responde Serra. "Tio, constrói um abrigo do lado do Centro de Santana?", diz A.L., 17. "Tem que falar com o Floriano." "Eu queria fazer cursos de moda e computação", pede V.A, 16. "Fale com o Floriano", repete Serra.
 

V.A., que perdeu os pais vitimados pela Aids, adora desenhar croquis de vestidos. "Mas meu maior sonho da vida é trabalhar com computador, na Microsoft", diz. As ambições da garotada são muitas, e variadas. D.A., 15, por exemplo, sonha ser "médica obstetra". "Eu já fui grávida, sabia?", conta. "De gêmeos." A gestação foi interrompida depois de um tombo numa escada.
 

A visita dura 16 minutos. Nos corredores da prefeitura, a turma encontra outro grupo de crianças passeando. Para muitos, é um momento de reencontro. "Menina, achei que você tivesse fugido", diz à A.L. uma ex-colega de orfanato. ""Agora "tô" morando em Santana. Me dá seu e-mail para a gente se falar." Graças à internet, acessada pelas crianças em telecentros públicos, ficou mais fácil contatar ex-amigos de orfanatos e abrigos.
 

A jovem L.E., 17, que fugiu de casa porque "apanhava muito", tem até cadastro no Orkut. Seu perfil virtual: mora "com meus pais". Onde: "No Havaí". Visão política: "Conservador de direita". Comunidades: "Chaves & Chapolin", "Gaviões da Fiel", "Eu Amo Meus Amigos", "Brasileiros -Nunca Desistimos". Na vida real, dos orfanatos e centros de referência, L.E. é outra pessoa. "Amo música black. Fiz cursos de panificação e auxiliar de escritório. Quero muito arrumar um emprego e poder pagar um quarto pra mim", diz.
 

Próxima parada: a mostra Dinos na Oca, no Ibirapuera. As crianças podem tocar em quase tudo e se divertem muito. Passam batido pela lojinha de souvenir, onde uma miniatura de dinossauro custa até R$ 20.
 

Às 18 hs., as Kombis transportam as crianças de volta ao centro de Santana, onde elas passarão mais alguns dias à espera de um destino. Algumas serão encaminhadas a orfanatos, outras a suas casas, numa tentativa de readaptação com os pais. É provável que algumas acabem nas ruas de novo. Viver não é preciso -no caso delas, nada preciso. A.L. foi criada em orfanato. Aos 14 anos, foi adotada. Aos 16, mandada embora da casa dos "pais" e devolvida à Justiça. Hoje ela tem 17. No próximo ano, perderá o direito de ficar em centros ou orfanatos. Será a responsável por sua própria vida.

@ - bergamo@folhasp.com.br
COM DANIEL BERGAMASCO (REPORTAGEM)



Texto Anterior: "Gosto de meu trabalho como ativista, mas o meu talento é como cantor"
Próximo Texto: Televisão: Câmera oculta "bomba" no telejornalismo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.