São Paulo, sábado, 19 de abril de 1997.

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LIVROS
Arrigucci esmiúça poemas de Bandeira e Murilo

JOSÉ GERALDO COUTO
especial para a Folha

Borges costumava dizer que ``algumas pessoas sentem escassamente a poesia, então dedicam-se a ensiná-la''.
Não é, felizmente, o caso do crítico e professor de literatura Davi Arrigucci Jr., que desde seu primeiro grande livro, ``O Escorpião Encalacrado'' (sobre o argentino Julio Cortázar), tem mostrado paixão e entusiasmo por seus objetos de estudo.
Em ``O Cacto e as Ruínas'', Arrigucci se detém na análise, feita em separado, de dois poemas: ``O Cacto'', de Manuel Bandeira, e ``As Ruínas de Selinunte'', de Murilo Mendes.
São, por trás da enganosa singeleza e da aparência descritiva, dois poemas magníficos, dignos de figurar entre as melhores obras desses grandes poetas.
A atilada análise de Arrigucci se encarrega de revelar toda a riqueza de construção e de significados das duas composições.
Em cada caso, Davi Arrigucci Jr. começa por abordar o universo poético do autor, de modo a situar a obra em seu contexto estético e humano.
Depois, parte para o que chama de ``análise cerrada'' do poema, esmiuçando a articulação entre suas imagens, sonoridades e conceitos.
Durante a operação, o crítico mostra ainda a riqueza de referências plásticas, literárias e históricas que potencializam o impacto dos dois poemas.
Estilo humilde
Em ``A Beleza Humilde e Áspera'', o ensaio sobre o poema de Manuel Bandeira, o crítico Davi Arrigucci Jr. mostra como o autor pernambucano toma um evento aparentemente banal -um enorme cacto que cai e transtorna a vida de um centro urbano- como emblema trágico da resistência moral.
Para realizar essa operação de transcendência, mostra-nos Arrigucci, Manuel Bandeira lança mão de paralelos e analogias do cacto com a estatuária (Laocoonte), a literatura (a ``Divina Comédia'') e a árida geografia do Nordeste.
Mas tudo isso com uma aparência descritivo-narrativa e o ``estilo humilde'' que Arrigucci tão bem estudou no livro que dedicou ao poeta, ``Humildade, Paixão e Morte''.
Na ``análise cerrada'' do poema, o crítico mostra as minúcias da ourivesaria de Bandeira, um dos autores tecnicamente mais hábeis da poesia brasileira.
Tudo -da escolha das imagens às aliterações mais sutis- conflui, como mostra Arrigucci, para a intensificação do sentido dramático da obra.
Se há um reparo a fazer à brilhante investigação de Arrigucci, ele diz respeito a uma certa redundância na exposição inicial do assunto.
Antes de entrar na análise do poema, o texto patina durante várias páginas praticamente sem sair do lugar.
Poética do assombro
Isso já não acontece no ensaio ``Arquitetura da Memória'', dedicado ao poema de Murilo Mendes, extraído por sua vez da coletânea ``Siciliana'' (1954-55).
Em seu preâmbulo ao estudo do poema, Davi Arrigucci expõe de modo enxuto e claro a trajetória poética de Murilo e sua singular combinação de surrealismo e catolicismo.
Ao falar de seus paradoxos e complexidades, o crítico define o olhar muriliano como uma ``poética do assombro'', de que ``As Ruínas de Selinunte'' seria um exemplo elevado.
O poema, que parte de uma descrição ``sui generis'' das ruínas de um teatro grego no litoral da Sicília, termina com uma formulação sentenciosa sobre o destino do homem.
Como o cacto de Bandeira, as ruínas de Murilo são emblemas da condição humana.
Qualidade
O mérito de Davi Arrigucci é mostrar como essa intenção ganha forma no corpo do poema -em seu ritmo, em suas eleições sintáticas e vocabulares-, formando um todo orgânico pleno de sentido.
Começa num plano de qualidade muito alto a coleção de crítica literária ``Mundo Enigma'', dirigida pelo próprio Arrigucci e pelo crítico Augusto Massi, colaborador da Folha, para a livraria Duas Cidades. Que continue assim.

Livro: O Cacto e as Ruínas Autor: Davi Arrigucci Jr. Editora: Duas Cidades Quanto: R$ 22 (128 págs.)
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