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LIVROS
Chesterton traz à tona demônio de cada um
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Não é por nada que "O Homem
Invisível e Outras Histórias do Padre Brown" traz, na contrapaca,
um registro crítico de Jorge Luis
Borges. Foi graças ao argentino
que G.K. Chesterton (1875-1936)
deixou um retiro crítico que parecia se eternizar e foi novamente
colocado entre os grandes criadores da literatura policial.
O estilo do padre Brown talvez
justifique esse relativo esquecimento. Chesterton é um autor cerebral demais para o gênero, e as
histórias do padre Brown têm um
desenvolvimento atípico na literatura policial.
Com frequência, a primeira parte desses contos descreve detidamente o cenário e os personagens
que participarão da segunda parte,
na qual ocorre o crime e irrompe o
mistério. Esse mistério, não raro,
sugere estarmos diante de um
acontecimento sobrenatural.
A terceira parte -a resolução-
é rápida, quase desprovida de suspense. Nela, em poucas palavras o
padre Brown junta as peças do caso e sugere uma solução implacavelmente lógica.
Nesta edição da Imago, Lucia
Santaella também optou por um
critério lógico para reunir os cinco
contos escolhidos e o executou
com felicidade. O primeiro, "O
Segredo do Padre Brown" é uma
espécie de apresentação do detetive. Ele expõe seu método de investigação a um interlocutor curioso.
Esse método não é tão original:
trata-se de conhecer a mente criminosa com tal intimidade que os
gestos de um assassino tornam-se,
a partir de certo ponto, transparentes à mente investigante.
O original está no que embasa esse método, a saber: para conhecer
um malfeitor é preciso ser um
malfeitor. E todo homem tem um
criminoso dentro de si, a quem deve dominar para chegar à existência normal (e em Chesterton a normalidade é uma árdua conquista).
Brown se explica com mais clareza: "Nenhum homem é, de fato,
bom, enquanto não souber quão
mau ele é, ou poderia ser". E enquanto sua única esperança não
for "a de ter capturado um criminoso e mantê-lo são e salvo sob o
próprio chapéu".
Ou seja, o mal é pelo menos metade de nós. Não estamos longe de
Georges Bernanos, o francês, também católico. Só que Bernanos é
sombrio e pessimista, enquanto
Chesterton transpira otimismo.
Chesterton também está muito
próximo da concepção de dualidade criada no cinema por Fritz
Lang. O dr. Mabuse, por exemplo,
não é mais do que a face obscura
de cada homem (daí seu perigo: ele
pode se transferir para cada homem). Essa idéia de dualidade se
desenvolve até com mais clareza
no romance -como o soberbo
"O Homem Que Foi Quinta-Feira"- do que nos contos.
Chesterton e Poe
O segundo relato do volume é
"O Homem Invisível", que fixa a
filiação direta de Chesterton a Edgar Allan Poe.
Poe criou o conto policial. Chesterton, discípulo, desdobra ali um
dos mais célebres inventos de seu
mestre, o da "carta roubada". Em
"O Homem Invisível" não é só
uma carta que se oculta atrás da
própria evidência, mas um homem inteiro.
Após essas duas histórias introdutórias, o leitor estará à vontade
para se estabelecer no universo
dual do padre Brown.
De algum modo, mesmo com toda a familiaridade do mundo, esses contos continuarão a espantar
tanto quanto as soluções de
Brown. Primeiro, porque desvendar quem é o criminoso é um aspecto secundário dos relatos. O
verdadeiro mistério dessas histórias consiste em descobrir a maneira como o crime é praticado.
Segundo, porque cada conto pode ser lido como um problema
matemático, em que solução já está contida na própria enunciação.
E, finalmente, porque o domínio
de Chesterton sobre a escrita não é
apenas lógico. Ele pode sintetizar
um falso cavalheiro em algumas linhas: "Tilintava o dinheiro nos
bolsos, agitava uma longa corrente dourada de relógio e nunca aparecia sem estar arrumado, assemelhando-se demais a um cavalheiro
para, de fato, sê-lo".
Pode ser ao mesmo tempo grave
e sorridente: "Se for verdade que,
no século 20, mais espaço será dado ao crime do que à política, isso
será apenas (porque) o crime é um
assunto mais sério".
De espanto em espanto e de prazer em prazer, chega-se ao último
dos cinco relatos, "O Segredo de
Flambeau". É um retorno ao início, à metodologia de Brown, mas
agora de forma mais filosófica. O
padre (isto é, Chesterton) destrincha com um interlocutor a natureza de seu trabalho (não raro "um
prazer incomumente abjeto") ou
a oscilação humana entre luz e treva, a mente sadia e "um universo
de desvairada falta de razão".
Mas volta ao ponto central de seu
pensamento ao enunciar a questão
do mal que existe em cada homem:
"Há dois modos de renunciar ao
demônio", diz. Um deles "é ter
horror ao demônio porque ele está
tão distante; o outro é ter horror
porque está tão perto".
Não há dúvida de que Chesterton está na segunda categoria. E de
que seus contos nos transportam
sub-repticiamente do mundo do
crime à experiência espiritual (não
necessariamente religiosa).
Livro: O Homem Invisível e Outras Histórias do Padre Brown
Autor: G.K. Chesterton
Lançamento: Imago
Quanto: R$ 12 (104 págs.)
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