São Paulo, sábado, 19 de abril de 1997.

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LIVROS
Chesterton traz à tona demônio de cada um

INÁCIO ARAUJO

Crítico de Cinema Não é por nada que "O Homem Invisível e Outras Histórias do Padre Brown" traz, na contrapaca, um registro crítico de Jorge Luis Borges. Foi graças ao argentino que G.K. Chesterton (1875-1936) deixou um retiro crítico que parecia se eternizar e foi novamente colocado entre os grandes criadores da literatura policial.
O estilo do padre Brown talvez justifique esse relativo esquecimento. Chesterton é um autor cerebral demais para o gênero, e as histórias do padre Brown têm um desenvolvimento atípico na literatura policial.
Com frequência, a primeira parte desses contos descreve detidamente o cenário e os personagens que participarão da segunda parte, na qual ocorre o crime e irrompe o mistério. Esse mistério, não raro, sugere estarmos diante de um acontecimento sobrenatural.
A terceira parte -a resolução- é rápida, quase desprovida de suspense. Nela, em poucas palavras o padre Brown junta as peças do caso e sugere uma solução implacavelmente lógica.
Nesta edição da Imago, Lucia Santaella também optou por um critério lógico para reunir os cinco contos escolhidos e o executou com felicidade. O primeiro, "O Segredo do Padre Brown" é uma espécie de apresentação do detetive. Ele expõe seu método de investigação a um interlocutor curioso.
Esse método não é tão original: trata-se de conhecer a mente criminosa com tal intimidade que os gestos de um assassino tornam-se, a partir de certo ponto, transparentes à mente investigante.
O original está no que embasa esse método, a saber: para conhecer um malfeitor é preciso ser um malfeitor. E todo homem tem um criminoso dentro de si, a quem deve dominar para chegar à existência normal (e em Chesterton a normalidade é uma árdua conquista).
Brown se explica com mais clareza: "Nenhum homem é, de fato, bom, enquanto não souber quão mau ele é, ou poderia ser". E enquanto sua única esperança não for "a de ter capturado um criminoso e mantê-lo são e salvo sob o próprio chapéu".
Ou seja, o mal é pelo menos metade de nós. Não estamos longe de Georges Bernanos, o francês, também católico. Só que Bernanos é sombrio e pessimista, enquanto Chesterton transpira otimismo.
Chesterton também está muito próximo da concepção de dualidade criada no cinema por Fritz Lang. O dr. Mabuse, por exemplo, não é mais do que a face obscura de cada homem (daí seu perigo: ele pode se transferir para cada homem). Essa idéia de dualidade se desenvolve até com mais clareza no romance -como o soberbo "O Homem Que Foi Quinta-Feira"- do que nos contos.
Chesterton e Poe
O segundo relato do volume é "O Homem Invisível", que fixa a filiação direta de Chesterton a Edgar Allan Poe.
Poe criou o conto policial. Chesterton, discípulo, desdobra ali um dos mais célebres inventos de seu mestre, o da "carta roubada". Em "O Homem Invisível" não é só uma carta que se oculta atrás da própria evidência, mas um homem inteiro.
Após essas duas histórias introdutórias, o leitor estará à vontade para se estabelecer no universo dual do padre Brown.
De algum modo, mesmo com toda a familiaridade do mundo, esses contos continuarão a espantar tanto quanto as soluções de Brown. Primeiro, porque desvendar quem é o criminoso é um aspecto secundário dos relatos. O verdadeiro mistério dessas histórias consiste em descobrir a maneira como o crime é praticado.
Segundo, porque cada conto pode ser lido como um problema matemático, em que solução já está contida na própria enunciação.
E, finalmente, porque o domínio de Chesterton sobre a escrita não é apenas lógico. Ele pode sintetizar um falso cavalheiro em algumas linhas: "Tilintava o dinheiro nos bolsos, agitava uma longa corrente dourada de relógio e nunca aparecia sem estar arrumado, assemelhando-se demais a um cavalheiro para, de fato, sê-lo".
Pode ser ao mesmo tempo grave e sorridente: "Se for verdade que, no século 20, mais espaço será dado ao crime do que à política, isso será apenas (porque) o crime é um assunto mais sério".
De espanto em espanto e de prazer em prazer, chega-se ao último dos cinco relatos, "O Segredo de Flambeau". É um retorno ao início, à metodologia de Brown, mas agora de forma mais filosófica. O padre (isto é, Chesterton) destrincha com um interlocutor a natureza de seu trabalho (não raro "um prazer incomumente abjeto") ou a oscilação humana entre luz e treva, a mente sadia e "um universo de desvairada falta de razão".
Mas volta ao ponto central de seu pensamento ao enunciar a questão do mal que existe em cada homem: "Há dois modos de renunciar ao demônio", diz. Um deles "é ter horror ao demônio porque ele está tão distante; o outro é ter horror porque está tão perto".
Não há dúvida de que Chesterton está na segunda categoria. E de que seus contos nos transportam sub-repticiamente do mundo do crime à experiência espiritual (não necessariamente religiosa).
Livro: O Homem Invisível e Outras Histórias do Padre Brown
Autor: G.K. Chesterton
Lançamento: Imago
Quanto: R$ 12 (104 págs.)

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