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RETROSPECTIVA
Filme é manifesto moderno
CRÍTICO DA FOLHA
Mais do que uma síntese da obra de Welles,
"Verdades e Mentiras" é
uma espécie de manifesto do
cinema moderno do pós-guerra. Depois da Segunda
Guerra, tanto o documentário quanto a ficção estavam
sob suspeição e os autores
do novo cinema, ao menos
os melhores (linhagem que
vai de Welles a Godard), já
não podiam tomá-los senão
enquanto verdades incertas.
O homem verídico, portador da verdade, personagem-síntese do cinema clássico, era então destituído de
seu posto. Em seu lugar surgia o falsário, não mais como
criminoso ou traidor, mas
em toda a sua multiplicidade, contaminando de incertezas as novas narrativas.
Vejamos a série de falsários de "Verdades": Elmyr
de Hory, um pintor falsário,
e seu biógrafo Clifford Irving, autor das falsas memórias do produtor hollywoodiano Howard Hughes, ele
próprio um bilionário falsário cheio de sósias.
Na ponta da cadeia encontramos Orson Welles, o eterno prestidigitador, artista
falsário de si mesmo -o filme remonta assim à série de
falsários criada por Herman
Melville em "O Vigarista",
clássico da literatura americana que também inspirou
Godard em seu episódio de
"As Maiores Vigarices do
Mundo" (1963).
Welles está na ponta da cadeia porque faz do falso uma
potência criadora da verdade. Como diria Gilles Deleuze num dos capítulos de "A
Imagem-Tempo", o verdadeiro artista é aquele que eleva o falso à última potência.
Tal é a certeza hamletiana
que Glauber julgava ver em
Godard: a "Verdade" já não
pode deter a "Vida". Se, no
cinema moderno, o antigo
"ideal de verdade" do cinema clássico é substituído por
uma "metamorfose do verdadeiro" própria da vida,
nunca poderemos deixar de
ver em Welles um de seus
autores fundamentais.
Afinal, Welles não apenas
tirou os homens verídicos,
os jornalistas ("Cidadão Kane"), os policiais ("A Marca
da Maldade"), os juristas
("O Processo" e o patético
tribunal de "A Dama de
Shangai") de seu confortável
trono. Ele também empossou os falsários.
Sua própria obra é uma série de falsários: Arkadin,
Quinlan, Bannister e O'Hara... para não falar dos shakespearianos Macbeth e Iago ("Othello"). No fundo,
trata-se de criar uma equivalência entre o homem verídico e o simples falsário (o falsário traidor) para mostrá-los como forças voltadas para alguma forma de poder.
Eles são a rã e o escorpião
daquela famosa parábola tão
recorrente em seus filmes.
Um afunda o outro enquanto o camaleônico Welles, o
"falsário criador", o Falstaff,
deixa-se levar pela correnteza, flutuando pelo rio da vida.
(TIAGO MATA MACHADO)
Verdades e Mentiras
F for Fake
Direção: Orson Welles
Produção: Alemanha/França/Irã,
1975
Quando: hoje, às 16h30, no CCBB
(r. Álvares Penteado, 112, São
Paulo, tel. 0/ xx/11/3113-3651)
Quanto: entrada franca
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