São Paulo, sexta-feira, 19 de abril de 2002

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RETROSPECTIVA

Filme é manifesto moderno

CRÍTICO DA FOLHA

Mais do que uma síntese da obra de Welles, "Verdades e Mentiras" é uma espécie de manifesto do cinema moderno do pós-guerra. Depois da Segunda Guerra, tanto o documentário quanto a ficção estavam sob suspeição e os autores do novo cinema, ao menos os melhores (linhagem que vai de Welles a Godard), já não podiam tomá-los senão enquanto verdades incertas.
O homem verídico, portador da verdade, personagem-síntese do cinema clássico, era então destituído de seu posto. Em seu lugar surgia o falsário, não mais como criminoso ou traidor, mas em toda a sua multiplicidade, contaminando de incertezas as novas narrativas.
Vejamos a série de falsários de "Verdades": Elmyr de Hory, um pintor falsário, e seu biógrafo Clifford Irving, autor das falsas memórias do produtor hollywoodiano Howard Hughes, ele próprio um bilionário falsário cheio de sósias.
Na ponta da cadeia encontramos Orson Welles, o eterno prestidigitador, artista falsário de si mesmo -o filme remonta assim à série de falsários criada por Herman Melville em "O Vigarista", clássico da literatura americana que também inspirou Godard em seu episódio de "As Maiores Vigarices do Mundo" (1963).
Welles está na ponta da cadeia porque faz do falso uma potência criadora da verdade. Como diria Gilles Deleuze num dos capítulos de "A Imagem-Tempo", o verdadeiro artista é aquele que eleva o falso à última potência.
Tal é a certeza hamletiana que Glauber julgava ver em Godard: a "Verdade" já não pode deter a "Vida". Se, no cinema moderno, o antigo "ideal de verdade" do cinema clássico é substituído por uma "metamorfose do verdadeiro" própria da vida, nunca poderemos deixar de ver em Welles um de seus autores fundamentais.
Afinal, Welles não apenas tirou os homens verídicos, os jornalistas ("Cidadão Kane"), os policiais ("A Marca da Maldade"), os juristas ("O Processo" e o patético tribunal de "A Dama de Shangai") de seu confortável trono. Ele também empossou os falsários.
Sua própria obra é uma série de falsários: Arkadin, Quinlan, Bannister e O'Hara... para não falar dos shakespearianos Macbeth e Iago ("Othello"). No fundo, trata-se de criar uma equivalência entre o homem verídico e o simples falsário (o falsário traidor) para mostrá-los como forças voltadas para alguma forma de poder.
Eles são a rã e o escorpião daquela famosa parábola tão recorrente em seus filmes. Um afunda o outro enquanto o camaleônico Welles, o "falsário criador", o Falstaff, deixa-se levar pela correnteza, flutuando pelo rio da vida. (TIAGO MATA MACHADO)


Verdades e Mentiras
F for Fake
    
Direção: Orson Welles
Produção: Alemanha/França/Irã, 1975
Quando: hoje, às 16h30, no CCBB (r. Álvares Penteado, 112, São Paulo, tel. 0/ xx/11/3113-3651)
Quanto: entrada franca




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