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São Paulo, quinta-feira, 19 de junho de 2003

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CINEMA/ESTRÉIAS

"TAURUS"

Produção sobre os últimos dias do líder soviético Lênin integra trilogia do russo sobre as utopias do século 20

Sokúrov expõe o ridículo do teatro político

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

O cinema sobreviveu às ideologias que, no século 20, dele quiseram se servir, mas a utopia do mundo filmado não sobreviveu às utopias políticas que deste se apropriaram.
Ao menos, enquanto utopia. Aleksander Sokúrov bem o sabe. Herdeiro de Tarkovsky, ele é o discípulo tardio de uma tradição que nasceu, no pós-Segunda Guerra, de dentre os mortos, portando o luto na memória. Sokúrov pertence, em espírito, à geração do cinema moderno que, em reação ao sonho-tornado-pesadelo do cinema-tornado-arma-de-propaganda do pré-guerra, dedicou-se à vigília e ao luto.
Mundo de vigilâmbulos e enlutados, o cinema de Sokúrov retorna, nesse sentido, às suas origens nesta trilogia que o cineasta vem empreendendo em torno dos grandes artífices das utopias políticas do século 20, Lênin, Hitler e Stálin. Tudo se passa como se Sokúrov reencontrasse, na cena de "Moloch" (2001) em que Hitler dá uma verdadeira aula de cinema a Goebbels, a matriz de toda a sua obra. Os nazistas, pequeno-burgueses, gostavam tanto de cinema quanto os revolucionários bolchevistas, mas tinham um gosto mais discutível. O cinema hitlerista foi, em boa medida, subhollywoodiano, o leninista, um insuperável cinema de vanguarda.
Em "Taurus", o Lênin (1870-1924) de Sokúrov só invoca o imaginário cinematográfico para imitar um gesto do protagonista camponês de "Terra", clássico de Dovjenko (o predileto de Sokúrov). De resto, o Lênin moribundo do filme lembra mais o protagonista de uma novela de Tolstói, "A Morte de Ivan Ilitch", entregue, em seu leito de morte, aos cuidados dos serviçais e ao esquecimento em vida. É com um incrível despudor que Sokúrov retrata o ridículo de seus personagens históricos nos momentos derradeiros de suas vidas. O pateticismo teatral das interpretações não deixa de ser uma sutil vingança contra aqueles que, em maior ou menor grau, teatralizaram a política. A liberdade que Sokúrov se dá não deixa de ser uma resposta àqueles que, tomando liberdades demais para com o cinema, fizeram-no refém da propaganda.


Taurus
Tieliéts
   
Produção: Rússia, 2001
Direção: Alexsandr Sokúrov
Com: Leonid Mozgovoi, Maria Kuznetsova, Natalia Nikulenko
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco



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