São Paulo, domingo, 19 de junho de 2005

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Luta livre: moda X teatro X arte

Fashion Rio, que termina hoje, vira palco para profissionais debaterem o limite de suas áreas

ERIKA PALOMINO
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Moda, teatro, arte. Os três universos nunca estiveram tão juntos. Para debater até onde vai um e começa o outro, quais os direitos e deveres de seus profissionais, convidamos os diretores teatrais chamados a interferir no momento supremo da moda: o desfile. E também duas estilistas que acionam a performance para ajudar a contar sua história.
Desentendido de moda, Hamilton Vaz Pereira, do clássico setenta-oitentista Asdrúbal Trouxe o Trombone, renovou a Blue Man com a juventude de seu grupo, andando de skate, jogando frescobol em plena passarela. "É meu primeiro trabalho com moda", suspira. Outra estréia, na vindoura São Paulo Fashion Week, com a Raia de Goeye: Felipe Hirsch ("A Vida É Cheia de Som e Fúria"), que tem em curso seu primeiro longa-metragem: "Estou curioso", diz.
Alberto Renault é macaco velho. Faz pela quinta vez a Maria Bonita Extra e acaba de arrasar no Rio com as bananas da Salinas. No teatro escreveu a peça "Futebol", adaptou "Um Homem sem Qualidade" para Bia Lessa e dirigiu "O Caso da Rua ao Lado", com Marisa Orth. Também coordenou cinco óperas, entre elas "Salomé" e "Orpheu", e dirigiu por três anos o programa "Brasil Legal" e por dois anos o "Muvuca", ambos com Regina Casé, na Globo. Gringo Cardia é diretor e cenógrafo para ninguém botar defeito, tendo renovado Forum e Triton na última temporada.
Alessandra Migani, a Alessa, começou trabalhando em publicidade, enquanto Karlla Girotto ocupou as primeiras páginas de todos os jornais no inverno, quando colocou suas modelos para dormir ao sol, no MAM.
A seguir, as opiniões fundamentais sobre a luta livre em curso no território da imagem.

MODA X CULTURA

Alberto Renault - Moda não é arte, é uma indústria voraz e antropofágica que absorve tudo. Uso elementos da arte na moda.

Alessandra Migani - Não que a moda seja arte. As coleções conceituais expressam o que o criador tem a dizer, como a arte. Moda e arte são trabalhos autorais que estão menos preocupados com venda e mais preocupados em transmitir a idéia de quem produz. Minha criação é muito parecida com a arte: passa o que sinto para o consumidor. Pessoas de pensamento mais erudito sentem-se mais seguras em usar peças mais conceituais, como a bolsa-baguete da última coleção. Não é todo mundo que olha e gosta, é preciso um certo refinamento.

Daniela Thomas - A cultura é uma coisa mutável. Agora o mundo da moda é o da vez. Sou velha o bastante para ter passado por várias fases. As pessoas começaram a me chamar para eu contribuir e ajudar a criar esse bicho, essa performance, que é um desfile.

Bia Lessa - Quando você compra um produto, por exemplo, um vestido, você está comprando um pensamento. Um desfile é uma oportunidade de agregar. Não tem mais como não ter direção.

Gringo Cardia - O papel do cenógrafo é ajudar, é como um arquiteto que faz a casa.

MODA X TEATRO

Hamilton Vaz Pereira - O teatro tem a mesma coisa da moda: é efêmero. Convence o público de que aquilo existe e aquilo desaparece. Estou acostumado com essa coisa de valorizar o instante. Essa coisa efêmera da passarela é normal. Para mim, a vida é assim.

Lessa - Você pode encontrar moda dentro de um espetáculo de teatro e pode encontrar teatro dentro de um desfile de moda. É uma coisa da modernidade, todas as coisas estão em todos os lugares ao mesmo tempo. Essa discussão: esconde a roupa, mostra a roupa... Esconde quando é malfeito... Quando a roupa é boa, tem que mostrar.

Felipe Hirsch - Geralmente o figurino no teatro responde de alguma maneira aos limites do realismo. Existe uma fonte diferente. Existem grandes figurinistas que trabalham com uma coisa mais barroca e dramatúrgica que é diferente da liberdade, da sensação que a moda tem. O teatro tem uma âncora na dramaturgia, que faz com que a fonte de criação seja diferente.

Renault - Por um momento, no final dos anos 80, essa teatralidade ficou malvista. Os belgas são um exemplo, aquele minimalismo todo, pé no chão, música simples e roupa, roupa, roupa... Alexander McQueen começou com isso e abriu esse espaço. Viktor & Rolf também faz isso muito bem.

Karlla Girotto - Na faculdade eles não estimulam esse pensamento completo da coleção, você fica focado mais nos itens. Eu precisei pesquisar sobre outras manifestações artísticas. Fiz curso de teatro no Antunes Filho, e ele tem um material de vídeo ao qual eu assisti quase todo.

Cardia - Os dois são espetáculos. Desde que comecei a fazer desfiles, sempre gostei de desfile-show, que é o conceito da moda, um acontecimento visual. Fiz mais moda praia, que é mais comportamento do que roupa em si. Moda conceitual estou fazendo agora para o Tufi Duek. Cada vez mais a moda está chegando nessa coisa de instalação cenográfica e plástica para se situar. A cenografia situa você dentro de um espaço.

Migani - Nunca vai acontecer de uma mídia anular a outra. Acredito que é misturar as duas até se fundir em uma coisa só. Tem que completar sem segregar, o objetivo é a interação.

REFERÊNCIAS: O MUNDO DA MODA LATU SENSU

Thomas - Fiquei muito impactada quando, nos anos 80, vi o trabalho de Jean-Paul Gaultier. E depois também o do Yohji Yamamoto e da Comme de Garçons, justamente por ver no estilista o tipo de artista conceitual de que gosto: com uma maneira de tratar a roupa arquitetonicamente ou como uma tela, uma escultura. Fiquei ligada na moda, mas como maneira de pensar a vestimenta para teatro. E depois a moda, nos anos 90, começou a ficar um pouco emperuada demais, eu perdi o interesse.

Lessa - Tenho estilistas que são referência: Yohji Yamamoto, Issey Miyake, Alexander McQueen (acho incríveis os desfiles que ele faz), Hussein Chalayan... A invenção do corte abre para mim um pensamento que eu desconhecia. O bom é quando a forma está linkada ao conteúdo.

Hirsch - A moda sempre foi um espelho da história, sempre contou do jeito dela a história. A moda está sempre percebendo a história da arte, contando essa história, e vice-versa. Num desses atalhos entre a história, a arte e a moda. A Daniela Thomas, que é uma pessoa que eu admiro e que a gente já trabalhou muito junto, criou vários cenários para as minhas peças desde 2000.

Renault - O inverso moda/teatro também funciona. Christian Lacroix fez figurinos para ópera já. Herchcovitch participou de novela. As modelos também têm uma relação próxima com as atrizes, a linha que divide as duas profissões é bem fina.

Migani - Amo Viktor & Rolf. Gosto do trabalho de Vivienne Westwood, os sapatos dela são incríveis, põem a mulher num pedestal. A loja do estilista Martin Margiela também é demais, não tem placa, nenhum sinal. Eu tinha só o endereço e, quando cheguei, tomei um susto. Ele faz o que chamo de design inteligente.

O DESFILE

Renault - Olho para a cena e não vejo a passarela. Desfile não pode ser só a modelo caminhar até o fotógrafo para mostrar a roupa. Gosto da idéia do "palco italiano". O que gosto no teatro não é a dramaturgia, é a plasticidade. O desfile resume em 15 minutos o que se trabalha por mais de seis meses. Hoje em dia não dá mais para ser "minimal", tem que ajudar a criar a imagem na cabeça do consumidor.

Girotto - Divido em dois tipos de apresentação bem definidos: o primeiro é o estilista que cria uma imagem final bem definida para o trabalho. A pesquisa é muito mais ampla e mais profunda e é concebida com a roupa. É a pesquisa essencial. A visualidade não pode ser isolada. Preciso dessa verdade maior nas minhas coleções. Outras marcas usam uma apresentação mais performática como ferramenta de marketing, que funciona como uma colagem para criar uma outra conexão com a roupa, pensada primeiro, para aí desenvolver o resto dos elementos, como cenografia, maquiagem e trilha. O link é superficial, não essencial. Alexander McQueen e Rei Kawakubo (Comme des Garçons) são exemplos. Os belgas também fazem isso muito bem, na sua linha "minimal". Quando Martin Margiela põe a roupa sendo comida por bactérias, não pensou isso como um jeito de mostrar a coleção já pronta. Na hora de criar a coleção pesquisou sobre todo o processo químico e já desenvolveu isso em cima do trabalho de investigação.

Lessa - O artista plástico ou pessoa de cinema ou teatro consegue entender a coleção e ampliar aquele conceito. O desfile da Salinas, por exemplo, amplia aquele conceito da Carmen Miranda de uma forma...! A banana que está viva, não é uma Carmen Miranda morta... E, ao mesmo tempo, a banana que vai apodrecer em alguns dias tem uma coisa a ver com a moda, é uma coisa efêmera. Mas a moda também transcende isso, essa cartografia das temporadas e estações...

Cardia - Gosto muito de John Galliano, de McQueen, fazem sempre espetáculos plásticos. Vão além da moda, e acho isso muito legal. Só me sinto dentro da moda contribuindo dessa maneira. Para mim, que não sou uma pessoa de moda, trabalho contribuindo. Tem um cara que eu gosto muito, Walter von Beirendonck, da W<, que acho um gênio. Gosto dessa coisa teatral, que ele tem bem forte, de tipos, sexo, ao mesmo tempo poético. Ele junta extremos. Essa mistura é bem contemporânea. Gosto bastante de Alexandre Herchcovitch.

Migani - O desfile precisa do comportamento; o comportamento precisa da ambientação. Só aí penso na roupa, quando já tenho decidido o espaço que ela vai ser apresentada, diferente de outros estilistas, que pensam na coleção (produto) antes.

MEU LOOK

Vaz Pereira - Não tenho nenhum contato com moda. Não compro grife, sou totalmente fora de moda. Às vezes, as pessoas são simpáticas e dizem que eu sou elegante. Uso roupas dos figurinos da peça que estou fazendo, não estou nem aí para isso. Ao mesmo tempo, acho bonito ver uma pessoa bem-vestida.

Thomas - Uso uma roupa de operário padrão, visto o básico. Uso a mesma coisa: jeans ou calça preta, camiseta preta ou branca e casaquinho. Passo direto, ninguém me olha. Sou meio voyeur, prefiro observar.

Lessa - Sou muito eclética. Moda para mim é estar bem nos lugares da forma mais parecida comigo. Não tenho marca, misturo tudo. Gosto de roupas mais clássicas: jeans e camiseta branca, vermelho ou amarelo. Nunca olho para a roupa que as pessoas estão.

Cardia - Gosto bastante de Fred Perry, mais as camisas, estilo meio inglês; gosto da Diesel e da Energie. Quando gosto, uso uma roupa todo dia até rasgar e acabar. Com tênis também faço isso: compro um e uso todos os dias; calça também. Troco só as outras coisas.


Colaboraram Sergio Amaral e André do Val, enviados especiais ao Rio. Os jornalistas viajam a convite do Fashion Rio

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