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RODAPÉ
Seis buracos negros e oito planetas coloridos
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Carne-Frita , Joaquinzinho, Praça, Rui Chapéu. São
personagens que migraram da vida real para o imaginário poético.
Habitavam um mundo meio irreal, subterrâneo. Falavam uma
linguagem própria, tinham códigos de honra particulares. Seus
templos eram o Salão Maravilhoso, o Snooker Magistral, o Bilhar
do Papai. Desapareceram há pouco tempo, ainda estão na memória de muita gente e, agora, ressurgem nas páginas de "Pela Sete:
Breves Histórias do Pano Verde",
de Carlos Bittencourt Ferreira.
O livro reúne histórias testemunhadas pelo autor ou por outras
personagens do mundo da sinuca, que em São Paulo foi a melhor
expressão da malandragem.
Ferreira relembra embates célebres, como o duelo entre Carne-Frita e Joaquinzinho, no ano de
1978, por conta da diferença de
cachê pago aos dois pela participação em "O Jogo da Vida" (filme
de Maurice Capovilla inspirado
em "Malagueta, Perus e Bacanaço", de João Antônio). Ou então o
jogo em que Praxedes, o Praça, faz
seu desafiante perder dinheiro,
relógio e anéis para, ao final, devolver a aliança de casamento que
o adversário imprudentemente
apostara.
Obviamente, o leitor terá mais
prazer com a leitura de "Pela Sete"
se tiver um mínimo de empatia
com o "pano verde", com esse
ambiente do "baratino" e da "picardia". Mas nem mesmo o jargão
será um obstáculo, pois o livro
traz um glossário que explica o
sentido de expressões como "estia" (hábito de devolver 10% do
dinheiro ganho ao adversário) ou
"partido" (vantagem de pontos
que se dá ao rival).
O principal objetivo de Ferreira
(que foi conhecido nesse meio como Jesus, por causa da barba e
dos cabelos longos) é captar a ginga dos "piranhas", os profissionais da sinuca; mas ele atinge
bons momentos de prosa poética,
como ao descrever, não sem ironia, essa espécie de "cosmologia
de gafieira".
"Sinuca é capoeira, esquiva de
navalhada, bote de cascavel, lábia
de dama da noite, passo riscado
de tango, drible seco, inapelável,
bofetada de costa de mão, sonora,
insolente, vexaminosa. É um universo paralelo, geométrico, profundo, formado por seis buracos
negros e oito planetas coloridos,
em torno dos quais gravitam os
seres mais diferentes."
Mesmo um livro despretensioso
pode gerar algumas questões
mais complexas. No caso de "Pela
Sete", tem-se a sensação de que
seu encanto se deve, em parte, à
nossa nostalgia da autenticidade,
à idealização de um tipo de vida
social cujos vínculos sejam estáveis, tradicionais.
Durante muito tempo, esse
imaginário arcaizante, estagnado
no tempo, esteve radicado no
mundo agrário. Sua representação literária se dava no romance
regionalista, que mergulhava no
"Brasil profundo" para mostrar a
perenidade de conformações sociais (uma estrutura de classes
"escravocrata") e culturais (cordialidade, miscigenação) que, na
cidade, acabavam sendo encobertas pelo ritmo frenético de mudanças apenas "epidérmicas".
Também a cidade, no entanto,
passou a oferecer um suporte para essa visão nostálgica, capaz de
nos reconciliar com um país cujas
contradições se apresentam como
uma fatalidade. Certos motivos
urbanos acabaram assumindo o
mesmo papel simbólico que o
carro de boi ou o arado tinham no
campo.
Situações de convívio como o
sarau, a serenata e os antigos pagodes, personagens como o malandro, o seresteiro, o amolador
de faca, o bicheiro ou o homem
do realejo são tão estranhos à realidade urbana de hoje quanto o
mundo perdido do Brasil rural e
conservam o sabor de uma sociedade tradicional, com seu calendário e seus papéis sociais fixos.
Nesse sentido, o jogador de sinuca (cuja "extinção" é recente)
se apresenta como mais novo integrante dessa galeria.
Com seus pequenos golpes e
sua vida de expedientes, eles habitam um submundo regido por regras arbitrárias, porém transparentes, e por códigos morais talvez escusos, porém rígidos, mostrando que mesmo figuras esquálidas e franzinas, consumidas por
cigarros e bebida barata, podem
deter uma verdade, uma sabedoria -nem que seja apenas sobre o
universo geométrico da mesa de
bilhar.
Pela Sete
Autor: Carlos Bittencourt Ferreira
Editora: Códex
Quanto: R$ 28 (144 págs.)
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