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São Paulo, sábado, 19 de julho de 2003

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RODAPÉ

Seis buracos negros e oito planetas coloridos

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Carne-Frita , Joaquinzinho, Praça, Rui Chapéu. São personagens que migraram da vida real para o imaginário poético. Habitavam um mundo meio irreal, subterrâneo. Falavam uma linguagem própria, tinham códigos de honra particulares. Seus templos eram o Salão Maravilhoso, o Snooker Magistral, o Bilhar do Papai. Desapareceram há pouco tempo, ainda estão na memória de muita gente e, agora, ressurgem nas páginas de "Pela Sete: Breves Histórias do Pano Verde", de Carlos Bittencourt Ferreira.
O livro reúne histórias testemunhadas pelo autor ou por outras personagens do mundo da sinuca, que em São Paulo foi a melhor expressão da malandragem.
Ferreira relembra embates célebres, como o duelo entre Carne-Frita e Joaquinzinho, no ano de 1978, por conta da diferença de cachê pago aos dois pela participação em "O Jogo da Vida" (filme de Maurice Capovilla inspirado em "Malagueta, Perus e Bacanaço", de João Antônio). Ou então o jogo em que Praxedes, o Praça, faz seu desafiante perder dinheiro, relógio e anéis para, ao final, devolver a aliança de casamento que o adversário imprudentemente apostara.
Obviamente, o leitor terá mais prazer com a leitura de "Pela Sete" se tiver um mínimo de empatia com o "pano verde", com esse ambiente do "baratino" e da "picardia". Mas nem mesmo o jargão será um obstáculo, pois o livro traz um glossário que explica o sentido de expressões como "estia" (hábito de devolver 10% do dinheiro ganho ao adversário) ou "partido" (vantagem de pontos que se dá ao rival).
O principal objetivo de Ferreira (que foi conhecido nesse meio como Jesus, por causa da barba e dos cabelos longos) é captar a ginga dos "piranhas", os profissionais da sinuca; mas ele atinge bons momentos de prosa poética, como ao descrever, não sem ironia, essa espécie de "cosmologia de gafieira".
"Sinuca é capoeira, esquiva de navalhada, bote de cascavel, lábia de dama da noite, passo riscado de tango, drible seco, inapelável, bofetada de costa de mão, sonora, insolente, vexaminosa. É um universo paralelo, geométrico, profundo, formado por seis buracos negros e oito planetas coloridos, em torno dos quais gravitam os seres mais diferentes."
Mesmo um livro despretensioso pode gerar algumas questões mais complexas. No caso de "Pela Sete", tem-se a sensação de que seu encanto se deve, em parte, à nossa nostalgia da autenticidade, à idealização de um tipo de vida social cujos vínculos sejam estáveis, tradicionais.
Durante muito tempo, esse imaginário arcaizante, estagnado no tempo, esteve radicado no mundo agrário. Sua representação literária se dava no romance regionalista, que mergulhava no "Brasil profundo" para mostrar a perenidade de conformações sociais (uma estrutura de classes "escravocrata") e culturais (cordialidade, miscigenação) que, na cidade, acabavam sendo encobertas pelo ritmo frenético de mudanças apenas "epidérmicas".
Também a cidade, no entanto, passou a oferecer um suporte para essa visão nostálgica, capaz de nos reconciliar com um país cujas contradições se apresentam como uma fatalidade. Certos motivos urbanos acabaram assumindo o mesmo papel simbólico que o carro de boi ou o arado tinham no campo.
Situações de convívio como o sarau, a serenata e os antigos pagodes, personagens como o malandro, o seresteiro, o amolador de faca, o bicheiro ou o homem do realejo são tão estranhos à realidade urbana de hoje quanto o mundo perdido do Brasil rural e conservam o sabor de uma sociedade tradicional, com seu calendário e seus papéis sociais fixos.
Nesse sentido, o jogador de sinuca (cuja "extinção" é recente) se apresenta como mais novo integrante dessa galeria.
Com seus pequenos golpes e sua vida de expedientes, eles habitam um submundo regido por regras arbitrárias, porém transparentes, e por códigos morais talvez escusos, porém rígidos, mostrando que mesmo figuras esquálidas e franzinas, consumidas por cigarros e bebida barata, podem deter uma verdade, uma sabedoria -nem que seja apenas sobre o universo geométrico da mesa de bilhar.

Pela Sete


   
Autor: Carlos Bittencourt Ferreira
Editora: Códex
Quanto: R$ 28 (144 págs.)



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