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São Paulo, sábado, 19 de julho de 2003

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"BELÈNZINHO, 1910"

Obra vencedora do Jabuti em 1962 ganha nova edição

Memórias revivem a SP da época da industrialização

HEITOR FERRAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ainda hoje no Belenzinho, perto do cemitério da Quarta Parada, pode se ver algumas casas de trabalhadores, com suas janelas e portas na calçada da rua. Muitas já passaram por reformas, ganhando um terracinho ou, o que é mais comum, uma garagem. No bairro, também se vê construções que foram fábricas ou ainda o são.
No começo, ou melhor, no século 19, o bairro era aprazível. O ar puro atraía muita gente que procurava uma estação de cura ou um bom lugar para ter uma chácara de final de semana. Porém, logo no início do século 20, várias fábricas se instalaram na região, principalmente aquelas de tecidos e de vidros, como conta Jacob Penteado, em "Belènzinho, 1910", um livro de memórias que havia sido publicado em 1962 e que agora reaparece, em nova edição. Quando editado pela primeira vez, ganhou o Prêmio Jabuti e esteve entre os mais vendidos durante algumas semanas.
É um documento único, que busca fixar o "retrato de um época", como diz o subtítulo. O autor, vindo de Sorocaba, tendo passado também por Buenos Aires, instalou-se ali com sua família, mãe e padrasto (o pai havia morrido muito jovem). Foi nesse bairro que ele, como diz, passou os melhores e os piores momentos de sua vida. Ainda garoto, com dez anos, passou a acompanhar o padrasto numa fábrica de vidro, a Cristaleria Itália, como aprendiz de vidreiro. Era comum na época as crianças trabalharem nas fábricas, enfrentando uma carga horária que ia das seis da manhã às oito da noite, com alguns curtos intervalos, incluindo trabalho aos sábados e, dependendo das encomendas, aos domingos.
É talvez o momento mais importante do livro, quando Penteado deixa um pouco de lado os tipos curiosos e os acontecimentos históricos dos tempos passados, para cair de chofre na vida cotidiana dos trabalhadores italianos e portugueses. A descrição do ambiente dessa "fabriquinha", como ele chama, era infernal.
"O ambiente era o pior possível. Calor intolerável, dentro de um barracão coberto de zinco, sem janelas nem ventilação. Poeira saturada de miasmas, de pó de drogas moídas. Os cacos de vidro espalhados pelo chão representavam outro pesadelo para as crianças, porque muitas trabalhavam descalças ou com os pés protegidos apenas por alpercatas de corda, quase sempre furadas. A água não primava pela higiene nem pela salubridade."
Penteado recompõe o cotidiano de um bairro operário de São Paulo, onde crianças sofriam todo tipo de abuso, até mesmo sexual, dentro das fábricas. As brigas eram comuns "naquele ambiente escaldante, cheio de provocações e incitamentos de parte dos oficiais. Era uma espécie de far-west: matar ou morrer, ou melhor, bater ou apanhar, para não passar por covarde".
Além desses momentos, de trabalho incessante, Penteado destaca a vida social, com suas festas, missas e jogos. O avô do atual bingo já fazia história na cidade: era o famoso jogo de tômbola, que acontecia sempre na casa de alguém. Essa é uma das passagens mais divertidas de sua narração, quando recupera o encontro de portugueses, italianos e espanhóis e as tensões existentes entre eles que vinham à tona durante a partida. Vale lembrar que o jogo de tômbola ainda era comum no bairro até recentemente.
O livro de Penteado, reeditado agora e com belo desenho de capa feito por Carla Caffé, é um testemunho de alguém que viveu em São Paulo em pleno início de sua industrialização. Em vários momentos, o autor apresenta uma visão esclarecida da condição dos trabalhadores (o mesmo, infelizmente, não vale para os negros; é quando ele peca por um ranço preconceituoso), recuperando uma história hoje esquecida.
Em "Belènzinho, 1910", Penteado mescla informações históricas e dados pessoais, mostrando como a forma de uma cidade muda rapidamente, mais rapidamente, como diria Baudelaire, "que o coração dos homens".


Heitor Ferraz, 38, é poeta e autor de "Hoje como Ontem ao Meio-Dia" (7 Letras)

Belènzinho, 1910
    
Autor: Jacob Penteado
Editora: Carrenho Editorial
Quanto: R$ 39 (295 págs.)



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