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"BELÈNZINHO, 1910"
Obra vencedora do Jabuti em 1962 ganha nova edição
Memórias revivem a SP da época da industrialização
HEITOR FERRAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ainda hoje no Belenzinho,
perto do cemitério da Quarta
Parada, pode se ver algumas casas
de trabalhadores, com suas janelas e portas na calçada da rua.
Muitas já passaram por reformas,
ganhando um terracinho ou, o
que é mais comum, uma garagem. No bairro, também se vê
construções que foram fábricas
ou ainda o são.
No começo, ou melhor, no século 19, o bairro era aprazível. O
ar puro atraía muita gente que
procurava uma estação de cura
ou um bom lugar para ter uma
chácara de final de semana. Porém, logo no início do século 20,
várias fábricas se instalaram na
região, principalmente aquelas de
tecidos e de vidros, como conta
Jacob Penteado, em "Belènzinho,
1910", um livro de memórias que
havia sido publicado em 1962 e
que agora reaparece, em nova edição. Quando editado pela primeira vez, ganhou o Prêmio Jabuti e
esteve entre os mais vendidos durante algumas semanas.
É um documento único, que
busca fixar o "retrato de um época", como diz o subtítulo. O autor,
vindo de Sorocaba, tendo passado
também por Buenos Aires, instalou-se ali com sua família, mãe e
padrasto (o pai havia morrido
muito jovem). Foi nesse bairro
que ele, como diz, passou os melhores e os piores momentos de
sua vida. Ainda garoto, com dez
anos, passou a acompanhar o padrasto numa fábrica de vidro, a
Cristaleria Itália, como aprendiz
de vidreiro. Era comum na época
as crianças trabalharem nas fábricas, enfrentando uma carga horária que ia das seis da manhã às oito da noite, com alguns curtos intervalos, incluindo trabalho aos
sábados e, dependendo das encomendas, aos domingos.
É talvez o momento mais importante do livro, quando Penteado deixa um pouco de lado os tipos curiosos e os acontecimentos
históricos dos tempos passados,
para cair de chofre na vida cotidiana dos trabalhadores italianos
e portugueses. A descrição do ambiente dessa "fabriquinha", como
ele chama, era infernal.
"O ambiente era o pior possível.
Calor intolerável, dentro de um
barracão coberto de zinco, sem janelas nem ventilação. Poeira saturada de miasmas, de pó de drogas
moídas. Os cacos de vidro espalhados pelo chão representavam
outro pesadelo para as crianças,
porque muitas trabalhavam descalças ou com os pés protegidos
apenas por alpercatas de corda,
quase sempre furadas. A água não
primava pela higiene nem pela salubridade."
Penteado recompõe o cotidiano
de um bairro operário de São
Paulo, onde crianças sofriam todo
tipo de abuso, até mesmo sexual,
dentro das fábricas. As brigas
eram comuns "naquele ambiente
escaldante, cheio de provocações
e incitamentos de parte dos oficiais. Era uma espécie de far-west:
matar ou morrer, ou melhor, bater ou apanhar, para não passar
por covarde".
Além desses momentos, de trabalho incessante, Penteado destaca a vida social, com suas festas,
missas e jogos. O avô do atual bingo já fazia história na cidade: era o
famoso jogo de tômbola, que
acontecia sempre na casa de alguém. Essa é uma das passagens
mais divertidas de sua narração,
quando recupera o encontro de
portugueses, italianos e espanhóis
e as tensões existentes entre eles
que vinham à tona durante a partida. Vale lembrar que o jogo de
tômbola ainda era comum no
bairro até recentemente.
O livro de Penteado, reeditado
agora e com belo desenho de capa
feito por Carla Caffé, é um testemunho de alguém que viveu em
São Paulo em pleno início de sua
industrialização. Em vários momentos, o autor apresenta uma
visão esclarecida da condição dos
trabalhadores (o mesmo, infelizmente, não vale para os negros; é
quando ele peca por um ranço
preconceituoso), recuperando
uma história hoje esquecida.
Em "Belènzinho, 1910", Penteado mescla informações históricas
e dados pessoais, mostrando como a forma de uma cidade muda
rapidamente, mais rapidamente,
como diria Baudelaire, "que o coração dos homens".
Heitor Ferraz, 38, é poeta e autor de
"Hoje como Ontem ao Meio-Dia" (7 Letras)
Belènzinho, 1910
Autor: Jacob Penteado
Editora: Carrenho Editorial
Quanto: R$ 39 (295 págs.)
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