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"QUASE CONY"
Retrato não faz jus ao retratado
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Em entrevista recente Carlos
Heitor Cony, escritor e membro do Conselho Editorial da Folha, declarou que só se pratica a literatura quando está infeliz. A
afirmação remete-nos à infância
do autor. Até os cinco anos ele
não disse palavra, exprimindo-se
por gestos. Mesmo depois, um
defeito da fala o afligiu durante algum tempo.
Cony trocava letras. O "g" pelo
"d", por exemplo. Quando tinha
11 anos, foi chamado pelo irmão a
dizer de uma notória senhora:
"Dona Jandira adora um fogão".
Estava no meio de um grupo de
rapazes. Cony repetiu a frase trocando as letras e todos caíram na
gargalhada. Sem entender o motivo dos risos, o menino passou a
sentença para o papel. Escreveu-a
corretamente. Mostrou aos moços. Ninguém riu.
O garoto aprendeu que era possível ser respeitado pela expressão
escrita. O texto permitia que escapasse das frustrações do mundo
real, evitando as armadilhas da
oralidade. Ao mesmo tempo, a
matéria primordial da literatura
conyiana é a memória. Por meio
da escrita, Cony resgata os fragmentos do passado e os recria ficcionalmente, instaurando uma
nova realidade, mais segura.
Muitos de seus romances podem ser considerados total ou
parcialmente autobiográficos.
Por isso, não é estranho que o jornalista Cícero Sandroni tenha
usado esses textos, de par com outras fontes, para traçar uma breve
trajetória da vida e carreira do
ocupante da cadeira número três
da Academia Brasileira de Letras.
Trata-se de uma tarefa temerária, haja vista a alentada produção
literária do imortal e a forma como sua vida plasmou-se com a
história recente do país, da qual é
observador influente. São notórios seus ataques à ditadura militar, suas críticas ao governo FHC
e ao programa Fome Zero.
No campo literário, foram 15 romances, diversos contos e incontáveis crônicas. Dentro do escopo
da série Perfis do Rio, não se pode
culpar o biógrafo por não dar
conta do extenso material. Sandroni define seu ensaio como
"hors d'oeuvre". Não seria nem
mesmo um perfil, mas um quase
perfil. Por isso não temos aqui um
Cony, mas um quase Cony.
O problema é que, mesmo com
isso em mente, o livro decepciona. Temendo o conservadorismo
de uma biografia tradicional, o
autor permite-se liberdades desnecessárias. Começa perscrutando as orelhas (!) de Cony, num
circunlóquio que não chega a lugar nenhum. Aproveita suas relações com o escritor para imiscuir-se no relato e mostrar familiaridade com os personagens. Há frases
ruins ("Itália, país que ele ama
com paixão") ou escusadas ("Ele
trocava letras, tal e qual [...] o
Hortelino Trocaletras"), além de
repetição e choque de informações. O biógrafo promete mostrar
isenção, mas seu discurso beira
perigosamente o laudatório.
"Quase Cony" é um retrato que
não faz jus ao retratado.
Quase Cony (da série Perfis do
Rio)
Autor: Cícero Sandroni
Editora: Relume Dumará (com a
Prefeitura do Rio)
Quanto: R$ 23 (140 págs.)
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