UOL


São Paulo, sábado, 19 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"QUASE CONY"

Retrato não faz jus ao retratado

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Em entrevista recente Carlos Heitor Cony, escritor e membro do Conselho Editorial da Folha, declarou que só se pratica a literatura quando está infeliz. A afirmação remete-nos à infância do autor. Até os cinco anos ele não disse palavra, exprimindo-se por gestos. Mesmo depois, um defeito da fala o afligiu durante algum tempo.
Cony trocava letras. O "g" pelo "d", por exemplo. Quando tinha 11 anos, foi chamado pelo irmão a dizer de uma notória senhora: "Dona Jandira adora um fogão". Estava no meio de um grupo de rapazes. Cony repetiu a frase trocando as letras e todos caíram na gargalhada. Sem entender o motivo dos risos, o menino passou a sentença para o papel. Escreveu-a corretamente. Mostrou aos moços. Ninguém riu.
O garoto aprendeu que era possível ser respeitado pela expressão escrita. O texto permitia que escapasse das frustrações do mundo real, evitando as armadilhas da oralidade. Ao mesmo tempo, a matéria primordial da literatura conyiana é a memória. Por meio da escrita, Cony resgata os fragmentos do passado e os recria ficcionalmente, instaurando uma nova realidade, mais segura.
Muitos de seus romances podem ser considerados total ou parcialmente autobiográficos. Por isso, não é estranho que o jornalista Cícero Sandroni tenha usado esses textos, de par com outras fontes, para traçar uma breve trajetória da vida e carreira do ocupante da cadeira número três da Academia Brasileira de Letras.
Trata-se de uma tarefa temerária, haja vista a alentada produção literária do imortal e a forma como sua vida plasmou-se com a história recente do país, da qual é observador influente. São notórios seus ataques à ditadura militar, suas críticas ao governo FHC e ao programa Fome Zero.
No campo literário, foram 15 romances, diversos contos e incontáveis crônicas. Dentro do escopo da série Perfis do Rio, não se pode culpar o biógrafo por não dar conta do extenso material. Sandroni define seu ensaio como "hors d'oeuvre". Não seria nem mesmo um perfil, mas um quase perfil. Por isso não temos aqui um Cony, mas um quase Cony.
O problema é que, mesmo com isso em mente, o livro decepciona. Temendo o conservadorismo de uma biografia tradicional, o autor permite-se liberdades desnecessárias. Começa perscrutando as orelhas (!) de Cony, num circunlóquio que não chega a lugar nenhum. Aproveita suas relações com o escritor para imiscuir-se no relato e mostrar familiaridade com os personagens. Há frases ruins ("Itália, país que ele ama com paixão") ou escusadas ("Ele trocava letras, tal e qual [...] o Hortelino Trocaletras"), além de repetição e choque de informações. O biógrafo promete mostrar isenção, mas seu discurso beira perigosamente o laudatório. "Quase Cony" é um retrato que não faz jus ao retratado.

Quase Cony (da série Perfis do Rio)


  
Autor: Cícero Sandroni
Editora: Relume Dumará (com a Prefeitura do Rio)
Quanto: R$ 23 (140 págs.)



Texto Anterior: "Belènzinho, 1910": Memórias revivem a SP da época da industrialização
Próximo Texto: Entrelinhas: Biblioteca Nacional quer redescobrir Brasil
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.