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Obra do escritor é revisitada com "Um Cativo Apaixonado", publicado logo após sua morte, e biografia de Edmund White
São Genet
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Não adianta procurar em
"Um Cativo Apaixonado",
de Jean Genet (1910-1986), um documento sobre a resistência palestina. Escrito 14 anos depois da
primeira visita de Genet às bases e
aos campos de refugiados palestinos, e publicado seis semanas
após a morte do escritor, "Um Cativo Apaixonado" não é nem documento nem romance nem propriamente livro de memórias,
embora esteja dividido em duas
partes chamadas "Lembranças 1 e
2": "São meus olhos e meu olhar
que viram o que acreditei descrever. (...) Isto é a minha revolução
palestina".
"Um Cativo Apaixonado" foi
escrito por um homem consciente da proximidade de sua morte
(desde 1976, Genet sofria de câncer na garganta) e da morte que
pairava sobre o futuro dos palestinos, depois de mais de 20 anos
sem publicar um único texto literário -seus romances datam dos
anos 40; sua última peça é de 1961.
É mais um livro sobre Genet entre os palestinos, sobre a sua visão
idiossincrática, do que um relato
objetivo sobre o movimento. Um
livro alimentado pelo desejo do
autor, de modo que a sua atração
pelos soldados palestinos, os fedaim, se confunde com a afirmação e o elogio dos esquecidos.
Os palestinos não interessam a
ninguém, são um povo esmagado
entre Israel e os regimes corruptos, oportunistas e autoritários
dos países árabes. Nesse sentido, a
revolução palestina que seduz Genet não é apenas um movimento
pela reconquista de um território
ocupado; é um movimento de libertação que lembra uma luta de
classes e põe em xeque a autoridade dos regimes árabes.
Política e desejo são indissociáveis para Genet. Como já havia
feito entre os Panteras Negras, no
início dos anos 70, nos Estados
Unidos, o escritor dá um sentido
político ao desejo, deixando-se
guiar por ele, mais do que pelo
bom senso. "Um Cativo Apaixonado" é um texto literário, antes
de mais nada por ser um exercício
radical de liberdade, de dizer e
pensar as coisas mais inusitadas, a
despeito do que podem pensar
uns e outros: "Este livro nunca será traduzido em árabe, nunca será
lido pelos franceses nem por nenhum europeu".
Genet visitou os palestinos em
diversas ocasiões entre 1970 e
1984. Viveu entre eles. Assim como seu amor pela causa palestina
se confunde com seu contato pessoal com os indivíduos, seu ódio
por Israel muitas vezes resvala
numa predisposição irracional
contra os judeus vistos como uma
massa na qual não é possível distinguir nenhum indivíduo. Seus
próximos o consideravam anti-semita. Em "Um Cativo Apaixonado", ele não hesita em demonizar tudo o que é judaico.
É preciso entender, no entanto,
que esse é um autor muitas vezes
complexo e contraditório, que
sempre se propôs a inflamar as relações e os sentidos que parecem
se assentar em bases consensuais
ou confortáveis, associando a sua
voz de homossexual, ex-detento e
marginalizado à dos desapossados, contra a razão hegemônica
que tenta transformar o usurpado
em usurpador.
Podem parecer chocantes, por
exemplo, suas impressões sobre o
heroísmo das mulheres-bomba.
Mas só até o leitor entender a relação de desconfiança que o próprio Genet mantém com a idéia
de heroísmo e de martírio, de coragem e de pátria: "Por trás dessas
palavras não há nada".
O que o interessa são as ações
vitais, movidas pelo desejo, muitas vezes violentas e inexplicáveis,
a guerra contra a hipocrisia burguesa e a opressão. É o que lhe
permite falar de uma certa beleza
do crime. Basta dizer que à imagem das mulheres-bomba ele associa a do transexual: "Logo que
sua decisão é tomada, uma alegria
o invade com a idéia de um sexo
novo, (...) uma alegria talvez próxima da demência, (...) alegria do
transexual, alegria do kamikaze,
alegria do herói". Uma comparação no mínimo desconcertante
para os que saúdam o heroísmo
desses atos.
Um Cativo Apaixonado
Autor: Jean Genet
Editora: Arx
Quanto: R$ 59 (528 págs.)
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