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São Paulo, sábado, 19 de julho de 2003

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Obra do escritor é revisitada com "Um Cativo Apaixonado", publicado logo após sua morte, e biografia de Edmund White

São Genet

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Não adianta procurar em "Um Cativo Apaixonado", de Jean Genet (1910-1986), um documento sobre a resistência palestina. Escrito 14 anos depois da primeira visita de Genet às bases e aos campos de refugiados palestinos, e publicado seis semanas após a morte do escritor, "Um Cativo Apaixonado" não é nem documento nem romance nem propriamente livro de memórias, embora esteja dividido em duas partes chamadas "Lembranças 1 e 2": "São meus olhos e meu olhar que viram o que acreditei descrever. (...) Isto é a minha revolução palestina".
"Um Cativo Apaixonado" foi escrito por um homem consciente da proximidade de sua morte (desde 1976, Genet sofria de câncer na garganta) e da morte que pairava sobre o futuro dos palestinos, depois de mais de 20 anos sem publicar um único texto literário -seus romances datam dos anos 40; sua última peça é de 1961.
É mais um livro sobre Genet entre os palestinos, sobre a sua visão idiossincrática, do que um relato objetivo sobre o movimento. Um livro alimentado pelo desejo do autor, de modo que a sua atração pelos soldados palestinos, os fedaim, se confunde com a afirmação e o elogio dos esquecidos.
Os palestinos não interessam a ninguém, são um povo esmagado entre Israel e os regimes corruptos, oportunistas e autoritários dos países árabes. Nesse sentido, a revolução palestina que seduz Genet não é apenas um movimento pela reconquista de um território ocupado; é um movimento de libertação que lembra uma luta de classes e põe em xeque a autoridade dos regimes árabes.
Política e desejo são indissociáveis para Genet. Como já havia feito entre os Panteras Negras, no início dos anos 70, nos Estados Unidos, o escritor dá um sentido político ao desejo, deixando-se guiar por ele, mais do que pelo bom senso. "Um Cativo Apaixonado" é um texto literário, antes de mais nada por ser um exercício radical de liberdade, de dizer e pensar as coisas mais inusitadas, a despeito do que podem pensar uns e outros: "Este livro nunca será traduzido em árabe, nunca será lido pelos franceses nem por nenhum europeu".
Genet visitou os palestinos em diversas ocasiões entre 1970 e 1984. Viveu entre eles. Assim como seu amor pela causa palestina se confunde com seu contato pessoal com os indivíduos, seu ódio por Israel muitas vezes resvala numa predisposição irracional contra os judeus vistos como uma massa na qual não é possível distinguir nenhum indivíduo. Seus próximos o consideravam anti-semita. Em "Um Cativo Apaixonado", ele não hesita em demonizar tudo o que é judaico.
É preciso entender, no entanto, que esse é um autor muitas vezes complexo e contraditório, que sempre se propôs a inflamar as relações e os sentidos que parecem se assentar em bases consensuais ou confortáveis, associando a sua voz de homossexual, ex-detento e marginalizado à dos desapossados, contra a razão hegemônica que tenta transformar o usurpado em usurpador.
Podem parecer chocantes, por exemplo, suas impressões sobre o heroísmo das mulheres-bomba. Mas só até o leitor entender a relação de desconfiança que o próprio Genet mantém com a idéia de heroísmo e de martírio, de coragem e de pátria: "Por trás dessas palavras não há nada".
O que o interessa são as ações vitais, movidas pelo desejo, muitas vezes violentas e inexplicáveis, a guerra contra a hipocrisia burguesa e a opressão. É o que lhe permite falar de uma certa beleza do crime. Basta dizer que à imagem das mulheres-bomba ele associa a do transexual: "Logo que sua decisão é tomada, uma alegria o invade com a idéia de um sexo novo, (...) uma alegria talvez próxima da demência, (...) alegria do transexual, alegria do kamikaze, alegria do herói". Uma comparação no mínimo desconcertante para os que saúdam o heroísmo desses atos.

Um Cativo Apaixonado


   
Autor: Jean Genet
Editora: Arx
Quanto: R$ 59 (528 págs.)



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