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TEATRO/"TIERNO BOKAR"
Brook celebra tolerância e bom senso em tempo de guerra
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Tierno Bokar (1875-1938) teve uma vida "pura como
uma prece", nos termos de seu
discípulo Peul Amadou Hampaté
Ba (1901-1991). Sábio de Bandiagara, no Mali, foi o principal promotor de um pensamento muçulmano ecumênico e cosmopolita.
Misturando as tradições do Alcorão ao sufi e tradições dos dogons -povo cujo nome significa
"aqueles aos quais foi dada a palavra"-, o principal ensinamento
de Bokar é afirmar que não há
uma só verdade, mas três: a minha, a sua e a do mundo, inatingível. Isto, em meio à luta colonialista, que acabaria por vitimá-lo.
Peter Brook, que desde 1968
mantém um olhar atento sobre a
África, através do contato direto
com Hampaté Ba e seu livro "O
Sábio de Bandiagara", brande em
sua mais recente encenação um
antídoto contra a intolerância cultural e esse hábito que se arraigou
pelo mundo de associar o pensamento muçulmano ao fanatismo
e à violência.
Bokar é apresentado em sua trajetória sem que se exaltem virtudes nem lamentem injustiças. A
desigualdade colonialista, baseada na cor da pele, é denunciada
em sua arbitrariedade através da
ingênua alegria de crianças negras
em descobrir que os excrementos
dos brancos são negros também.
Por sua vez, a pueril arrogância do
comandante francês é ridicularizada quando, obrigando nativos a
uma impossível tarefa de pavimentar uma estrada encharcada,
acaba se afogando no barro.
Além do discreto humor diante
da crueldade, o grande instrumento de Brook é a recusa da eloqüência. Afinal, está divulgando o
pensamento daquele que disse:
"A fala é um fruto cuja pele é a tagarelice, a polpa, a eloqüência e o
caroço, o bom senso". A narrativa
épica, que remete à técnica dos
"griots", os contadores de história
da África ocidental, economiza os
recursos necessários, que se concentram na elegância da luz de
Philippe Vialatte, nos figurinos de
Jette Kraghede, na música executada por Toshi Tsuchitori e Antonin Stahly.
É como se a fonte de sabedoria
de Bokar, atingindo Brook por intermédio de Hamapaté Ba, inundasse os atores em cena. Chega a
ser intimidante a enorme dignidade que mostram Sotigui Koyuaté, no papel-título, assim como Bruce Meyers e Yoshi Oïda.
Diante do ensinamento do mestre, seria deslocado por parte dos
atores qualquer ostentação técnica, e talvez daí venha um incômodo, como se estivessem subaproveitados. No "Mahabharata", auge da carreira desse grupo de
Brook, batalhas tinham de ser ganhas, e os atores eram heróis.
Apenas um rapaz, que se apresenta sem ser convidado para a luta, é
condenado a cortar seu polegar.
Em tempos de guerra, na luta
contra a violência, Brook exige
agora o sacrifício de todos os polegares. Despojado até a desolação, o espetáculo é desarmante
como um sorvete de gelo, que se
dissolve na boca assim que lábios
o tocam. Avesso à análise em sua
simplicidade absoluta, a atitude
diante dele é o silêncio, como em
uma experiência iniciática.
Tierno Bokar
Direção: Peter Brook
Quando: qui. e sex., às 21h
Onde: Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141,
tel. 0/xx/11/5080-3000)
Quanto: R$ 30 (ingressos esgotados)
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