São Paulo, quinta-feira, 19 de agosto de 2004

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TEATRO/"TIERNO BOKAR"

Brook celebra tolerância e bom senso em tempo de guerra

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Tierno Bokar (1875-1938) teve uma vida "pura como uma prece", nos termos de seu discípulo Peul Amadou Hampaté Ba (1901-1991). Sábio de Bandiagara, no Mali, foi o principal promotor de um pensamento muçulmano ecumênico e cosmopolita.
Misturando as tradições do Alcorão ao sufi e tradições dos dogons -povo cujo nome significa "aqueles aos quais foi dada a palavra"-, o principal ensinamento de Bokar é afirmar que não há uma só verdade, mas três: a minha, a sua e a do mundo, inatingível. Isto, em meio à luta colonialista, que acabaria por vitimá-lo.
Peter Brook, que desde 1968 mantém um olhar atento sobre a África, através do contato direto com Hampaté Ba e seu livro "O Sábio de Bandiagara", brande em sua mais recente encenação um antídoto contra a intolerância cultural e esse hábito que se arraigou pelo mundo de associar o pensamento muçulmano ao fanatismo e à violência.
Bokar é apresentado em sua trajetória sem que se exaltem virtudes nem lamentem injustiças. A desigualdade colonialista, baseada na cor da pele, é denunciada em sua arbitrariedade através da ingênua alegria de crianças negras em descobrir que os excrementos dos brancos são negros também. Por sua vez, a pueril arrogância do comandante francês é ridicularizada quando, obrigando nativos a uma impossível tarefa de pavimentar uma estrada encharcada, acaba se afogando no barro.
Além do discreto humor diante da crueldade, o grande instrumento de Brook é a recusa da eloqüência. Afinal, está divulgando o pensamento daquele que disse: "A fala é um fruto cuja pele é a tagarelice, a polpa, a eloqüência e o caroço, o bom senso". A narrativa épica, que remete à técnica dos "griots", os contadores de história da África ocidental, economiza os recursos necessários, que se concentram na elegância da luz de Philippe Vialatte, nos figurinos de Jette Kraghede, na música executada por Toshi Tsuchitori e Antonin Stahly.
É como se a fonte de sabedoria de Bokar, atingindo Brook por intermédio de Hamapaté Ba, inundasse os atores em cena. Chega a ser intimidante a enorme dignidade que mostram Sotigui Koyuaté, no papel-título, assim como Bruce Meyers e Yoshi Oïda.
Diante do ensinamento do mestre, seria deslocado por parte dos atores qualquer ostentação técnica, e talvez daí venha um incômodo, como se estivessem subaproveitados. No "Mahabharata", auge da carreira desse grupo de Brook, batalhas tinham de ser ganhas, e os atores eram heróis. Apenas um rapaz, que se apresenta sem ser convidado para a luta, é condenado a cortar seu polegar.
Em tempos de guerra, na luta contra a violência, Brook exige agora o sacrifício de todos os polegares. Despojado até a desolação, o espetáculo é desarmante como um sorvete de gelo, que se dissolve na boca assim que lábios o tocam. Avesso à análise em sua simplicidade absoluta, a atitude diante dele é o silêncio, como em uma experiência iniciática.


Tierno Bokar
   
Direção: Peter Brook
Quando: qui. e sex., às 21h
Onde: Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141, tel. 0/xx/11/5080-3000)
Quanto: R$ 30 (ingressos esgotados)



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