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CONTARDO CALLIGARIS
O sorriso de Fernandinho Beira-Mar
Fernandinho Beira-Mar
está sorrindo triunfante. Paira no ar sua frase conclusiva, depois do assassinato de seus rivais,
no meio de um presídio de segurança máxima: "Tá dominado, tá
tudo dominado".
Aviso: ele e seus semelhantes
não vão parar de sorrir tão cedo.
O narcotráfico continuará presente e influente em nossa sociedade. Para ter uma idéia de seu
ciclo econômico, de suas cumplicidades e de suas parcerias políticas, leia o pequeno livro de Mário
Magalhães, "O Narcotráfico". Logo, seguindo a observação de Gilberto Dimenstein na Folha de domingo, considere nossa massa de
jovens desempregados ou subempregados: não faltam os voluntários baratos para o exército dos
vários Beira-Mar.
Também não faltarão clientes.
Os psicanalistas e os psicólogos
constatam há tempos que existe
uma relação direta entre a sociedade de consumo e o uso de drogas. Esperamos que a felicidade
venha dos objetos que consumimos, mas descobrimos repetidamente que não é bem assim: nenhum objeto de consumo é conclusivo. Ao contrário, cada objeto
nos remete ao seguinte, como
uma bebida que aumentasse a sede. A droga parece prometer uma
satisfação final: graças a ela, dispensaremos todos os outros objetos -seu consumo nos apaziguará, enfim. De fato, ela apenas
transforma a frustração consumista banal numa privação dolorosa, mas que tem a vantagem de
ser unívoca: o drogado, ao menos,
sabe o que lhe falta.
Há mais um traço de nossa cultura que garante o bom humor
dos Fernandinhos Beira-Mar do
mundo inteiro.
Em Nova York, conheci jovens
de subúrbios luxuosos que, à noite, percorriam as ruas escuras do
Bronx à procura de uma boca de
tráfico. E alunos das melhores escolas particulares da cidade, que
subiam até a rua 145, no Harlem,
e penetravam em prédios assombrados à procura de uma pedra
de crack. Conheci jovens do bairro 16, em Paris, que, atrás de haxixe, se perdiam na desolação dos
complexos habitacionais mais
violentos e racialmente discriminados. Outros, sem deixar o centro da cidade, embrenhavam-se
nos meandros da estação do metrô Châtelet, misturando-se às
gangues de adolescentes de origem norte-africana. Conheci jovens da zona sul do Rio de Janeiro
ou da Barra que subiam regularmente aos morros à procura de
coca ou de fumo. Assim como conheci jovens paulistanos de classe
média que, à noite, um gorro de
lã enfiado na cabeça, erravam ao
redor da estação da Luz.
Nenhum deles estava querendo
só um baseado, uma pedra ou um
papelote. Procuravam também a
proximidade com os fornecedores. A viagem para as bocas brabas é uma parte essencial do jogo:
a droga vale mais e, quem sabe,
funcione melhor, quando é distribuída como uma partícula de
marginalidade.
Os "mauricinhos" nacionais,
americanos e europeus encontram na miséria e na exclusão dos
pequenos traficantes um ideal.
Muitos adotam as vestimentas, o
estilo, a maneira de caminhar, os
gestos e as gírias malandras dos
fornecedores de droga.
Os Fernandinhos Beira-Mar do
mundo podem sorrir. Eles gozam,
com efeito, de um extraordinário
poder. Não só a droga é um objeto
adequado à sede de consumo,
mas a marginalidade de seus difusores faz sonhar os filhos da
classe média.
Deve ser uma experiência
enlouquecedora: sentir a falta de
tudo ou de quase (da dignidade,
de uma família, do conforto, do
amparo, dos afetos etc.) e encontrar o olhar lânguido dos filhos
dos donos do pedaço. Se alguns
outros supõem que eu goze de poderes e prazeres desmedidos, quero confirmar sua suposição: encherei o céu de balas e iluminarei
a noite queimando corpos.
Mas esse triunfo é para a câmara da imprensa. Os soldadinhos
do tráfico conhecem sua própria
miséria. Nas horas vagas, eles sonham com o mesmo conforto e os
mesmos afetos que, para os
"mauricinhos", manifestam o
conformismo "desprezível" de seu
mundo: a rotina do estudo e do
trabalho, os sonhos enlatados, a
sabedoria rançosa dos pais.
Em suma, o morro sonha com a
praia e a praia sonha com o morro. Para todos, a vida está fora do
eixo, sempre alhures. Beira-Mar
tem razão: "Tá tudo dominado"
-não por ele, mas pela insatisfação de todos com seu destino, que
é a condição básica do funcionamento e da expansão de nossa sociedade.
Nos últimos dias, no Espaço
Unibanco de Cinema, em São
Paulo, discutiu-se sobre o glamour que o cinema pode conferir
à miséria e à violência. Pretexto
mais próximo: "Cidade de Deus",
o filme (admirável) de Fernando
Meirelles. Questão: será que as
imagens cinematográficas da
marginalidade extraviam os adolescentes? A coisa é mais complexa. Os rebentos do privilégio podem sonhar com a marginalidade porque constatam o seguinte:
os adultos que louvam e querem
impor a tranquilidade ordeira da
existência, de fato, não sonham
com a vida que eles vivem e promovem. Se, na noite, os filhos tomam o caminho do morro, dos
subúrbios ou do Harlem, é porque
os pais não se deleitam com a calma do lar, mas ficam "zappeando" à procura de um filme de
bandidos para devanear felizes
antes de dormir.
ccalligari@uol.com.br
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