São Paulo, sábado, 19 de setembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA
Diretor filma vida e obra do poeta simbolista
Back recria desterro de Cruz e Sousa

JOSÉ GERALDO COUTO
enviado especial a Florianópolis

Cruz e Sousa (1861-98), poeta negro catarinense morto há cem anos, está virando filme pelas mãos do cineasta branco catarinense Sylvio Back, 60.
"Cruz e Sousa - O Poeta do Desterro", nono longa-metragem de Back, está sendo rodado em Florianópolis, cidade natal do poeta simbolista. O filme, orçado em R$ 700 mil e bancado em grande parte pela Telesc (telefônica estadual), deve ficar pronto no final do ano.
O elenco, majoritariamente negro, é encabeçado por Kadu Carneiro (no papel do poeta) e Maria Ceiça (como sua mulher, Gavita).
Além de "Cruz e Sousa", o cineasta tem um filme em andamento -o documentário "Véu de Curitiba", quase todo já rodado- e outro em projeto: a produção internacional "Lost Zweig", ficção sobre os últimos dias do escritor austríaco Stefan Zweig, que se suicidou em Petrópolis em 1942.
Back concedeu esta entrevista à Folha no escritório que montou no centro de Florianópolis para a realização de "Cruz e Sousa".

Folha - Por que Cruz e Sousa?
Sylvio Back -
Dos poetas do século passado, ele é aquele cuja obra ainda tem um viço e uma qualidade absoluta. Não é à toa que Mário de Andrade e Otto Maria Carpeaux, entre outros, escreveram que a moderna poesia brasileira começa com Cruz e Sousa.
Folha - A vida pessoal dele também foi trágica...
Back -
Daria uma telenovela: viveu sempre na miséria, a mulher ficou louca, ele morreu tuberculoso aos 36 anos... Mas meu filme evita esse biografismo sentimental.
Folha - O filme será mais alegórico que narrativo?
Back -
Difícil dizer. Selecionei fatias-chave da vida dele: a morte dos pais, a loucura da Gavita, a forma como ele morreu, o emparedamento cultural, a busca de transcendência... Tudo o que se diz no filme vem de suas cartas e poemas.
Transformei a poesia em personagem, dei muita importância à palavra. A palavra, hoje, está menos banalizada que a imagem. Embora pareça um paradoxo, acho que o cinema hoje deve mostrar cada vez menos. O filme é um poema com 34 estrofes. Os cenários não se repetem. No meio, três pequenos "insights" documentais, que serão surpresas.
Folha - Seu primeiro projeto era um documentário, não?
Back -
Era um misto de documentário e ficção e teria uns 50 minutos. Mas aí, percebi que ele não só é o maior poeta negro da língua, como um poeta único, inimitável. Achei que o projeto era pouco. O personagem merecia mais.
Folha - Que temas ou poemas você privilegiou?
Back -
Evitei dar visibilidade aos poemas ou ilustrá-los. Fiz uma interpretação dentro dos parâmetros da transcendência que ele buscava.
Sua obra está sempre entre Eros e Tanatos, e a transcendência no meio. Mas nunca deixou de ter um pé na desigualdade racial.
Folha - Qual seria, em síntese, a sua visão de Cruz e Sousa?
Back -
Eu diria que ele era o negro que não sabia o seu lugar (risos). Essa arrogância dele é fantástica. Ele achava que, tendo o talento e a cultura que tinha, sendo um homem belo e galante, podia atravessar a linha da cor. E há uma mitologia perversa em torno dele (até na comunidade negra, que praticamente desconhece sua obra).
Ele foi emparedado porque sua obra não cabia nos parâmetros do poder literário de seu tempo. É um poeta que está sempre em transe. Há uma teatralidade, um exagero. É o poeta do excesso.
Folha - O fato de ser do Sul também lhe deu uma voz diferente...
Back -
Exato. O simbolismo nasceu na província, de certo modo passou ao largo do Rio. Começou com Cruz e Sousa, foi a Minas, com Alphonsus de Guimarães.
Acho que, quando foi para o Rio, Cruz e Sousa levou esse inconsciente coletivo mágico da ilha de Santa Catarina, com essa origem açoriana, com Portugal, com a África, com a escravidão.
Esse aspecto, do homem de província deslocado na capital, foi um elemento de identificação minha com ele. Quando cheguei com meu filme "Lance Maior", em 1968, ao Rio, o pessoal do cinema novo me rechaçou. Quer dizer, de desterro eu entendo. Estou me biografando por meio desse personagem.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.