São Paulo, sábado, 19 de setembro de 1998

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Filme faz retrato cruel e humano de David Bowie

do enviado ao Rio

Declarada ficção, "Velvet Goldmine" é produto descaradamente inspirado na figura de David Bowie, ali eleito, não sem razão, homem-símbolo do glitter. Mais: é uma reflexão aguda sobre aquela mesma pessoa, possível homem-símbolo da cultura pop dos 70.
Brian Slade, o personagem, passa por todas as etapas por que Bowie passou até 84, quando o ciclo do filme se encerra. Trata-se de referência ao "1984" de George Orwell e a "Diamond Dogs" (74), LP com que Bowie, sob total inspiração de "1984", encerrou a fase glitter.
Ele começa de terninho, adolescente "mod" moldado pelas bandas da "swinging London" dos 60 (Who, Kinks) -é o Bowie semi-anônimo de "The Laughing Gnome" (67) e "Space Oddity" (69).
Daí a pouco, já canta ostentando longos e escorridos cabelos louros e um vestido longo -é o Bowie rebento dos abortos do "mod" e do "flower power", o de "Changes" (71), bomba-relógio acionadora da revolução de gêneros sexuais que viria a se chamar glitter.
Aqui ainda há algo de ocultação. Pois a figura de Marc Bolan, amigo, rival e detonador do "ChangesBowie" -talvez iniciador factual do glitter, lado a lado com os longos cílios postiços de Malcolm McDowell em "Laranja Mecânica" (71), de Stanley Kubrick- é simplificado numa drag queen que inicia a vida sexual gay de Slade.
Em seguida, ele aparece caracterizado tal qual o ET Ziggy Stardust -plumas, tinturas azuis e aquele corte de cabelo que, anos à frente, só foi encontrar seguidores em gente como Chitãozinho e Xororó.
A partir dessa passagem, a ficção alucinada alça vôo. Slade/Bowie se apaixona por Curt Wild -um liquidificado de Iggy Pop com Lou Reed, mais fartas pitadas do mocinho dos 90 Kurt Cobain, favorecidas pela caracterização desta vez deficiente de Ewan McGregor.
Quando Slade e Wild consumam sua paixão, a trilha de fundo é "Satellite of Love", a canção mais rasgada de "Transformer" (72), disco que salvou Lou Reed das teias de aranha. Quem produziu? Bowie. Quem geme feito gata no cio nos backing vocals? Bowie.
A partir de tal encontro, "Velvet Goldmine" vira novelão romântico -gay. Tudo pode bem se resumir às fantasias do diretor, mas na mesma medida tudo cabe como pura expressão dos fatos.
A dúvida permanecerá -ao alcance do público, astros pop não sofrem, não são felizes/infelizes, não amam-, mas "Velvet Goldmine" avança alguns quilômetros na história da cinematografia pop, por não temer a hipérbole. Dado incomum em filmes americanos candidatos ao mainstream, não se dilui em sugestões ou suavizações.
No decorrer do filme, McGregor interpretará nudez frontal; Slade beijará, apaixonado, a boca de Wild; este fará sexo com Arthur Stuart (Christian Bale), terceiro vértice da história, do qual é melhor nem falar antes do filme.
O glitter, pela ótica do militante Todd Haynes, terá sido, menos que uma convulsão de ambivalência sexual na história do século 20, o momento em que a conduta gay tomou a frente da cena e não teve qualquer pudor de dizer seu nome.
Com o tempo, até seus protagonistas -como Bowie e os essenciais e em princípio extra-glitter Bryan Ferry e Brian Eno- jogaram fumaça sobre a crueza da história. Fantasioso ou realista, Haynes restabelece até onde pode a crueza, construindo um retrato muito cruel -e humano- de David Bowie, logo do homem dos 70, logo de qualquer homem. (PAS)
˛
Filme: Velvet Goldmine Onde: Estação Botafogo (r. Voluntários da Pátria, 97, Botafogo, Rio, tel. 021/286-0893) Quando: hoje, às 21h30


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