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ARNALDO JABOR
João Cabral mostrou o que a poesia poderia ser
A morte de João Cabral não me
espantou tanto quanto a de Tom
Jobim. Tom caiu como a derrubada de uma floresta, me deu a sensação de que uma coisa vegetal,
florescente, tinha secado, como
um crime ecológico. João Cabral
ali, morto diante de mim, me evocava o chão, a coisa mineral que
ele tinha sido em vida e que recuperava sua imobilidade natural.
E não estou fazendo apenas
uma metaforazinha que explique
sua poesia; é que João foi um dos
poucos artistas que passaram
além da arte e entraram numa
terra-de-ninguém que poucos
poetas do mundo visitaram, uma
"waste land", um latifúndio improdutivo pré-linguagem, um lugar de onde se descobre uma "vida mais intensa, com nitidez de
agulha" e onde "toda frouxa matéria ganha nervos e arestas".
Uma das frases mais profundas
que conheço sobre a serventia do
artista é de Cézanne: "Eu sou a
consciência da paisagem que se
pensa em mim". Essa ligação com
a natureza perdida, esse "link"
com o passado animal, esse apagamento entre sujeito e objeto,
unindo os dois num só bloco, essa
humílima renúncia ao sonho individual de uma iluminação inspirada, essa recusa a ser "sujeito
autônomo", esse desejo de ser coisa-do-mundo, geológico, essa recusa humilde a uma luz na alma,
a ter um "centro", um foco, um
ego, tudo isso me lembra João Cabral, que poderia dizer também
que ele foi "a consciência da linguagem se falando nele".
Por isso me decepcionei com as
matérias na imprensa sobre ele,
todas mencionando seu desejo de
"não perfumar a flor, nem poetizar o poema", todas falando do
seu estilo seco, como se ele fosse
apenas um faxineiro dos parnasianos e dos palavrosos. João foi
muito mais.
Ninguém disse que ele era um
dos maiores poetas do mundo.
Ninguém falou que, com ele, a
língua portuguesa, essa esquecida
flor, foi mais fundo em direção ao
misterioso "Real", que quase nenhuma outra terra já avistada
por alguns como John Donne,
mais tarde por Francis Ponge,
Marianne Moore, gente que não
brincava de beleza, mas de epistemologia. João Cabral, para mim,
fez uma teoria da percepção.
A primeira coisa que João Cabral me disse, quando o entrevistei em 1992, foi: "Eu sinto uma
angústia danada; é terrível, porque a gente não sabe de onde vem
essa dor". Senti que ali estava a
pista de sua poesia, o preço que
ele pagava por sua insana procura de "uma realidade prima e tão
violenta, que ao tentar apreendê-la, toda imagem rebenta".
Antes de morrer, ele disse a alguém: "Escrevo não para me expressar, mas para preencher um
vazio". Quem tem coragem de entrar nesse vazio? João teve. Que
poema foi mais fundo que "Uma
Faca Só Lâmina", descrevendo
em minúcias formas inexistentes,
balas, facas e relógios invisíveis
enterrados em nossas vidas?
João teve a obsessão de atingir
algo além do tempo e do espaço,
uma espécie de sonho kantiano, a
vontade louca de ir além do "fenômeno". Às vezes, João parece
ter conseguido.
João passou a vida com dor de
cabeça; não era para menos. Que
cabeça aguenta esse esforço permanente de ter dois microscópios
nos olhos, de flagrar o decorrer do
tempo no alpendre, no canavial, o
tempo corroendo as coisas como
um vento invisível? (Van Gogh o
pintou e se matou).
Como Proust, Cabral também
queria "geometrizar" os sentimentos, esquadrinhando-os como objetos concretos, de todos os
lados, sem aspiração a espiritualidades e transcendências, sempre
comparando matéria com matéria, mostrando que a mulher é
igual à fruta, que a praia é o lençol, a bailarina é a égua e o cavaleiro, que o rio tem dentes podres,
o cão não tem plumas, a alma do
miserável é feita de pano sujo de
aniagem e "nós somos da mesma
matéria de que são feitos os sonhos", como disse outro gênio.
Meu primeiro contato com a
poesia de João fez-me ver que tudo que eu tinha lido de poesia era
aguado, errando o alvo com adjetivos molengas. João me virilizou,
acabou com a sensação de que arte era "coisa de veado", como diziam meus amigos e meu pai, engenheiro, filho de poeta árabe.
Tive um grande alívio quando
João Cabral me disse, na entrevista: "O mal que Fernando Pessoa
fez a literatura é imenso. Aquela
coisa derramada, caudalosa
criou uma multidão de poetastros
que acreditam na inspiração metafísica. Até Drummond ficou assim no fim da vida". Eu, que segredava covardemente pelos cantos que não gostava de Pessoa, finalmente respirei. E João Cabral
continuou: "Saio do poema suando, com picareta. Minha obra é
motivo de angústia. O sujeito tem
de viver no extremo de si mesmo.
Eu vejo isso na tourada. O bom
toureiro é o que dá a impressão
ao público de que vai morrer".
João nem parece um artista; parece cientista, matemático, o que
fortalece seu sopro lírico, domado, reprimido, mas circulando como sangue dentro da pedra.
João Cabral fez a poesia mais
profunda sobre o Brasil, a mais
"política" também, sem gritos
conteudistas, sem apelos contra a
injustiça, apenas com uma discretíssima compaixão. Sua legitimação épica e crítica vem das palavras, da forma, como em Maiakóvski. João rimava com o país
porque, como ele, o Brasil também padece desta angústia, deste
vazio que permanece inalterado,
cercado de palavras falsas por todos os lados.
O Brasil nunca foi visto por João
como uma barroca oferta de riquezas, nem de ouros, nem de luxos, nem de tragédias. O Brasil de
João é mais profundo -ele não
nos mostra a pobreza; ele mostra
a riqueza que nos falta. Em sua
poesia pelo avesso, João nos mostrou tudo o que "não" tínhamos.
João mostrou-nos o que poderia
ser nossa língua e o que o país está perdendo.
João mudou a minha vida e,
creio, de muitos artistas brasileiros. Caetano, Gil, João Gilberto,
Gullar, Waly, Arnaldo Antunes,
Nuno Ramos, tantos, não seriam
possíveis sem ele; nem eu, pobre
de mim, existiria sem tê-lo lido.
Por isso, este necrológio tardio,
para agradecer-lhe.
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