São Paulo, segunda, 19 de outubro de 1998

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MASSIVE ATTACK
Som é Jamaica pós-apocalipse

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha

Na Jamaica pós-apocalipse, o reggae não passa de uma lembrança. Zumbis disformes vagam pelas ruas de Montego Bay, em busca de comida ou proteção (porque às vezes a gente se sente muito pequeno, e precisa de proteção).
Os médicos da emergência do hospital geral de Kingston enfrentam casos de bizarrice inominável, ainda não descritos pela medicina. A violência foge do controle do que resta das "autoridades", as psicoses fazem os velhos manuais de psiquiatria parecer doces histórias de Hans Christian Andersen.
A bucólica Ochorríos, antigo paraíso hedonista, está reduzida a escombros, um momento sombrio à inércia. A vida no mar acabou.
Sabe-se lá como, três sobreviventes (3D, Mushroom e Daddy G) ainda conseguem fazer música. Pouco se lembram do que era o reggae tradicional, mas, em suas composições, contam com a ajuda de um veterano desse tipo de som.
Ele sorri, usa boné verde e roupa militar de camuflagem, de algum modo parece protegido contra a desesperança à sua volta. Corre sangue quente nas veias desse homem (seu nome é Horace, é das poucas pessoas que ainda têm nome no inferno caribenho).
Horace e sua companheira, Deborah, se lembram de que a música negra do século 20 tinha várias derivações: rhythm and blues, soul, o próprio reggae jamaicano.
Com ouvidos nas lições do velho Horace e os olhos sobre a desolação do presente, eles compõem no limite entre paixão e desespero. As raízes negras estão em todo lugar, mas sobre elas se erguem um paredão de guitarras e a percussão obsessiva das máquinas.
Os três sobreviventes decidem formar uma banda. Olham em volta e concluem que o nome não poderia ser outro: ataque devastador, Massive Attack.
O que você leu até agora é mais ou menos ficção. Vamos aos fatos.
Massive Attack é uma banda de Bristol, sul da Inglaterra, que conta com um núcleo de três pessoas: Robert Del Naja (3D), Grant Marshall (Daddy G) e Andrew Vowles (Mushroom). No palco, são figuras soturnas, quase imóveis. Mushroom, que é DJ, mal aparece.
O vocalista Horace Andy e Deborah Miller, cheios de alma e groove, acompanham a atual turnê. Sábado, em São Paulo, o Massive Attack tinha uma missão inglória: entrar no palco depois da radioatividade hipnótica do Kraftwerk.
Quando os vocais ficam a cargo de Horace e/ou Deborah, como em "Daydreaming" e "Spying Glass", temos momentos do que se poderia chamar de reggae ortodoxo. Mesmo "Man Next Door", que em disco soa tão aflitiva, no palco se revela um reggae disfarçado.
O clima muda quando Daddy G e 3D assumem o comando para apresentar o repertório do disco mais recente, "Mezzanine". Em "Inertia Creeps", ainda mais assustadora que no CD, chegam à perfeição no que parece ser a tarefa do Massive Attack neste planeta: amalgamar espírito negro e claustrofobia.
Ao longo de seus três álbuns, a banda foi se distanciando de qualquer sonoridade que se pudesse chamar de normal. Exemplo: é quase impossível dizer que a versão de "Exchange", cheia de guitarras, foi composta pela mesma banda que um dia escreveu a leve "Unfinished Sympathy".
Ao vivo, essas fases todas acabam se misturando, o que transmite certa sensação de irregularidade.
Mas não importa. O Massive Attack mostrou o que sabe fazer melhor. Indeciso entre contemplar o fim da civilização ou compor uma trilha para ele, nos brindou com 16 breves pérolas de sexo e morte.


Álvaro Pereira Júnior, 35, é chefe de Redação do "Fantástico" em São Paulo.



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