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MASSIVE ATTACK
Som é Jamaica pós-apocalipse
ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha
Na Jamaica pós-apocalipse, o
reggae não passa de uma lembrança. Zumbis disformes vagam pelas
ruas de Montego Bay, em busca de
comida ou proteção (porque às vezes a gente se sente muito pequeno, e precisa de proteção).
Os médicos da emergência do
hospital geral de Kingston enfrentam casos de bizarrice inominável,
ainda não descritos pela medicina.
A violência foge do controle do que
resta das "autoridades", as psicoses fazem os velhos manuais de
psiquiatria parecer doces histórias
de Hans Christian Andersen.
A bucólica Ochorríos, antigo paraíso hedonista, está reduzida a escombros, um momento sombrio à
inércia. A vida no mar acabou.
Sabe-se lá como, três sobreviventes (3D, Mushroom e Daddy G)
ainda conseguem fazer música.
Pouco se lembram do que era o
reggae tradicional, mas, em suas
composições, contam com a ajuda
de um veterano desse tipo de som.
Ele sorri, usa boné verde e roupa
militar de camuflagem, de algum
modo parece protegido contra a
desesperança à sua volta. Corre
sangue quente nas veias desse homem (seu nome é Horace, é das
poucas pessoas que ainda têm nome no inferno caribenho).
Horace e sua companheira, Deborah, se lembram de que a música
negra do século 20 tinha várias derivações: rhythm and blues, soul, o
próprio reggae jamaicano.
Com ouvidos nas lições do velho
Horace e os olhos sobre a desolação do presente, eles compõem no
limite entre paixão e desespero. As
raízes negras estão em todo lugar,
mas sobre elas se erguem um paredão de guitarras e a percussão obsessiva das máquinas.
Os três sobreviventes decidem
formar uma banda. Olham em volta e concluem que o nome não poderia ser outro: ataque devastador,
Massive Attack.
O que você leu até agora é mais
ou menos ficção. Vamos aos fatos.
Massive Attack é uma banda de
Bristol, sul da Inglaterra, que conta
com um núcleo de três pessoas:
Robert Del Naja (3D), Grant Marshall (Daddy G) e Andrew Vowles
(Mushroom). No palco, são figuras
soturnas, quase imóveis. Mushroom, que é DJ, mal aparece.
O vocalista Horace Andy e Deborah Miller, cheios de alma e groove,
acompanham a atual turnê. Sábado, em São Paulo, o Massive Attack
tinha uma missão inglória: entrar
no palco depois da radioatividade
hipnótica do Kraftwerk.
Quando os vocais ficam a cargo
de Horace e/ou Deborah, como em
"Daydreaming" e "Spying Glass",
temos momentos do que se poderia chamar de reggae ortodoxo.
Mesmo "Man Next Door", que em
disco soa tão aflitiva, no palco se
revela um reggae disfarçado.
O clima muda quando Daddy G e
3D assumem o comando para
apresentar o repertório do disco
mais recente, "Mezzanine". Em
"Inertia Creeps", ainda mais assustadora que no CD, chegam à perfeição no que parece ser a tarefa do
Massive Attack neste planeta:
amalgamar espírito negro e claustrofobia.
Ao longo de seus três álbuns, a
banda foi se distanciando de qualquer sonoridade que se pudesse
chamar de normal. Exemplo: é
quase impossível dizer que a versão de "Exchange", cheia de guitarras, foi composta pela mesma
banda que um dia escreveu a leve
"Unfinished Sympathy".
Ao vivo, essas fases todas acabam
se misturando, o que transmite
certa sensação de irregularidade.
Mas não importa. O Massive Attack mostrou o que sabe fazer melhor. Indeciso entre contemplar o
fim da civilização ou compor uma
trilha para ele, nos brindou com 16
breves pérolas de sexo e morte.
Álvaro Pereira Júnior, 35, é chefe de Redação
do "Fantástico" em São Paulo.
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