São Paulo, Sexta-feira, 19 de Novembro de 1999
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Will Self e a infantilização da cultura

Evelson de Freitas/Folha Imagem
O escritor Will Self, que lançou em Londres o seu quarto livro de contos, diz que Kafka o inspira




Escritor britânico fala sobre seu novo livro, a coletânea de contos "Tough, Tough Toys for Tough, Tough Boys", lançada na Inglaterra

SYLVIA COLOMBO
Editora-assistente da Ilustrada

Estamos em um mundo em que não há mais relações amorosas ou sexuais entre os seres humanos. Em vez disso, cada homem e cada mulher anda acompanhado de um gigante, cuja aparência hiperboliza suas próprias características. Esses simpáticos monstros (chamados de "emotos") têm um comportamento infantil e sua existência se justifica pela tarefa que cumprem: a de dar conforto e carinho para seus respectivos pares humanos.
Esse estranho planeta nada mais é do que a própria Terra, nos anos 90; e os seres humanos, habitantes das grandes metrópoles do Hemisfério Norte. O estresse contemporâneo fez com que as pessoas perdessem a capacidade de resolver seus problemas afetivos. Agora, vivem insones e infelizes, à base de Prozac e calmantes. Seus "emotos" são seu contato com o mundo, uma espécie de guarda-costas moral e emocional.
Essa é uma das alegorias que habitam o universo surreal do escritor britânico Will Self, 38, um dos maiores autores ingleses da atualidade. O enredo descrito acima é de "Caring, Sharing" (Cuidando, Repartindo), um dos contos do seu mais novo livro "Tough, Tough Toys for Tough, Tough Boys (Brinquedos Violentos para Garotos Violentos), recém-lançado no Reino Unido.
O Brasil ainda conhece pouco da obra de Self. Seu único livro traduzido para o português é "Cock & Bull - História de Phadas e Phodas" (Geração Editorial). Self esteve em São Paulo em 1994 para seu lançamento, durante a 13ª Bienal do Livro de São Paulo.
A temática de "Tough, Tough Toys for Tough, Tough Boys" é o desconforto do homem perante as transformações do mundo urbano moderno. O estilo satírico e ácido do autor é agressivo. Self é um contador de histórias, com a verve inundada de humor negro e de realismo fantástico.
Seus contos são delírios, em que perversão sexual e drogas são aditivos essenciais. Leia os principais trechos da entrevista que Self concedeu à Folha, por telefone, de sua casa, em Londres.

Folha - Os contos em seu novo livro tratam, de uma forma geral, da infantilização do homem. Para você, o tema faz parte da vida moderna nas cidades?
Will Self -
Sim. "Caring, Sharing", por exemplo, é uma sátira à crescente infantilização da cultura contemporânea em geral. Acho que é a forma que a classe média urbana encontrou para se preservar, criando um estado de dependência do amor e do cuidado paterno. E essa dependência encontra várias formas: terapia, Prozac, relações sem compromisso...

Folha - O conto que você cita revela que os gigantes infantis (os "emotos"), criados para cuidar dos homens, acabam aproveitando melhor a vida. Você vê um processo de envelhecimento precoce?
Self -
A infantilização dos adultos é evidenciada pela maneira como esta geração trata suas crianças, tentando torná-las adutas muito cedo. Em Londres, você frequentemente vê crianças sendo levadas em carrinhos motorizados. Isso faz crer que a infância passou a ser um estado de invalidez. Minha sátira tenta abordar essas aberrações que aparecem com as transformações sociais.

Folha - De onde vem a idéia dos "emotos"?
Self -
Vem diretamente da observação da maneira como as crianças modernas são tratadas como adultos (eu disse modernas, mas isso na verdade sempre aconteceu na história, de uma maneira ou de outra). Mas realmente existe uma grande tendência nas culturas desenvolvidas contemporâneas para ter nas crianças os substitutos para operar as relações adultas.
Nesse movimento o que está acontecendo é a "super-sexualização" da criança e a "sub-sexualização" dos adultos. "Caring, Sharing" evoca esse movimento.

Folha - E no conto que dá nome ao livro, "Tough, Tough Toys for Tough, Tough Boys"?
Self -
Em "Tough, Tough Toys" o tema da infantilização está apontado para a recusa em crescer evidenciada em particular nos homens de meia-idade (a conhecida "síndrome de Peter Pan") e desenvolvida por eles na forma de uma obsessão em conquistas sexuais, carros rápidos, esportes, drogas e álcool.

Folha - O personagem Bill Bywater, protagonista do conto, que revê sua vida ao dar carona a um estranho, é um alcoólatra. No caso dele, a bebida se deve a uma recusa em crescer?
Self -
Sim, o alcoolismo é parte de sua patologia, que é a recusa em ficar adulto. A tristeza da história é que ele não visualiza o vazio que leva dentro de si, e é justamente a vergonha de não poder enxergar o seu vazio interior que acaba o matando.

Folha - Os contos "Caring, Sharing" e "Flytopia", cujas histórias giram em torno de personagens mutantes, são inspirados em Franz Kafka (1883-1924)?
Self -
Para mim Kafka sempre foi uma influência constante, não só ao permitir uma certa licença surreal, mas também pelo exame da relação entre o indivíduo e os sistemas de controle ideológico, como o Estado, a religião etc.

Folha - Suas histórias estão sempre cheias de imagens ricas. Já pensou em transformá-las em cinema?
Self -
Não. Eu acho que a missão de escritores de ficção é escrever obras que não sejam filmáveis e eu tenho orgulho em dizer que nada da minha obra foi filmado. Cinema é uma mídia decadente dominada por homens de negócios. A prosa de ficção é eternamente jovem.

Folha - Você escreveu um livro sobre os vícios da imprensa britânica, principalmente da imprensa sensacionalista ("The Sweet Smell of Psychosis"). Qual é sua opinião sobre a mídia em seu país atualmente?
Self -
Eu tenho uma visão crítica, que mostrei em "The Sweet Smell...", mas atuo na mídia. Faço uma série de perfis femininos para o "Independent on Sunday", jornal onde terei uma coluna de TV a partir de janeiro. Também escrevo colunas em revistas norte-americanas e faço resenhas para diários ingleses. Minha relação com a mídia é ambivalente e acho que o livro citado captura como essa ambivalência se resolve numa mistura de sentimentos.


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