São Paulo, Sexta-feira, 19 de Novembro de 1999
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DISCO/CRÍTICA

Bethânia compõe "mapas afetivos" do país em "Diamante Verdadeiro"

FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local

Deve-se tomar o título do novo CD duplo ao vivo de Maria Bethânia ao pé da letra. O disco é uma jóia, e por várias razões, a sinceridade da cantora, sua coerência intransigente como artista, seu descompromisso com a mesquinharia do showbiz e as marolas do mercado não sendo as menores delas.
"Diamante Verdadeiro" é resultado do show "A Força Que Nunca Seca", nome do disco anterior, que tem entre seus méritos a "descoberta" da faixa-título, de Chico César, um achado de concisão e concentração poética, de equilíbrio tenso entre letra e música.
Como o show, o disco tem unidade, tem propósito e tem um movimento. Quando gravou "A Força Que Nunca Seca", a cantora disse que queria fazer um disco "olhando para o interior, para a região onde nasci". O projeto então esboçado se realiza plenamente, atingindo outro patamar, no show, dirigido pelo diretor teatral e antigo parceiro Fauzi Arap.
Bethânia parte da geografia, ou das geografias míticas e nostálgicas do "Brasil profundo": afunda primeiro no mar de Dorival Caymmi ("O Mar", "Morena do Mar", "Suíte dos Pescadores", "Dois de Fevereiro"), passa pelo interior idílico de "Avarandado", de Caetano Veloso, e envereda pelos "sertões" do país ("Luar do Sertão", "Azulão", "Trenzinho Caipira", "Romaria"), para concluir essa primeira etapa da viagem com "Iansã" (Caetano e Gil), espécie de oração musical primitiva ("senhora de tudo dentro de mim/ rainha dos raios/ tempo bom/ tempo ruim").
"Doce Mistério da Vida" faz a transição para o segundo disco do CD e a segunda etapa dessa viagem em três tempos. É a canção romântica, o país brega-afetivo, que agora dá a tônica; Bethânia passa da geografia do Brasil profundo para a geografia interna do país sentimental. Aí está Roberto Carlos ("Outra vez", "Não Tenha Medo", "As Flores do Jardim da Nossa Casa"), aí estão Maysa ("Resposta"), Zezé di Camargo ("É o Amor"), Pixinguinha ("Fala Baixinho"), Chico Buarque ("Olhos nos Olhos").
"Sonho Meu", de Yvone Lara, faz a transição para o movimento final do disco. "Vá buscar quem mora longe", pede a canção, e Bethânia cumpre a tarefa, política, numa explosão de força.
Vêm então "Marginália 2", "A Força Que Nunca Seca", "Assentamento" e "Roda-Viva", a mítica "Carcará", uma leitura solene e amarga de um trecho do "Navio Negreiro", de Castro Alves.
O saldo da viagem: Bethânia compõe mapas geográficos-afetivos do país, de fora para dentro e de dentro para fora, gritando no fim, de modo engajado, e sem receio de sê-lo, que alguma coisa essencial nesse percurso se perdeu, que o país, enfim, se perdeu.
Há muitos recados implícitos nesse "Diamante Verdadeiro". Para o mano Caetano (o contraste entre os "navios negreiros" de um e outro é evidente), para a frieza burocrática com que Gal Costa relê a bossa nova, para o país de ACM e FHC, para o barateamento da cultura, o arrivismo em voga, a indiferença, a falta de critérios. Bethânia faz isso cantando, ocupando com a voz e os pés descalços todos os espaços do palco, onde se transfigura. Isso basta.


Avaliação:     


Disco: Diamante Verdadeiro
Artista: Maria Bethânia
Lançamento: BMG
Quanto: R$ 40 ( em média)



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