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DISCO/CRÍTICA
Bethânia compõe "mapas afetivos"
do país em "Diamante Verdadeiro"
FERNANDO DE BARROS E SILVA
da Reportagem Local
Deve-se tomar o
título do novo CD
duplo ao vivo de
Maria Bethânia ao
pé da letra. O disco
é uma jóia, e por várias razões, a sinceridade da cantora, sua coerência intransigente
como artista, seu descompromisso com a mesquinharia do showbiz e as marolas do mercado não
sendo as menores delas.
"Diamante Verdadeiro" é resultado do show "A Força Que Nunca Seca", nome do disco anterior,
que tem entre seus méritos a "descoberta" da faixa-título, de Chico
César, um achado de concisão e
concentração poética, de equilíbrio tenso entre letra e música.
Como o show, o disco tem unidade, tem propósito e tem um
movimento. Quando gravou "A
Força Que Nunca Seca", a cantora
disse que queria fazer um disco
"olhando para o interior, para a
região onde nasci". O projeto então esboçado se realiza plenamente, atingindo outro patamar,
no show, dirigido pelo diretor teatral e antigo parceiro Fauzi Arap.
Bethânia parte da geografia, ou
das geografias míticas e nostálgicas do "Brasil profundo": afunda
primeiro no mar de Dorival
Caymmi ("O Mar", "Morena do
Mar", "Suíte dos Pescadores",
"Dois de Fevereiro"), passa pelo
interior idílico de "Avarandado",
de Caetano Veloso, e envereda
pelos "sertões" do país ("Luar do
Sertão", "Azulão", "Trenzinho
Caipira", "Romaria"), para concluir essa primeira etapa da viagem com "Iansã" (Caetano e Gil),
espécie de oração musical primitiva ("senhora de tudo dentro de
mim/ rainha dos raios/ tempo
bom/ tempo ruim").
"Doce Mistério da Vida" faz a
transição para o segundo disco do
CD e a segunda etapa dessa viagem em três tempos. É a canção
romântica, o país brega-afetivo,
que agora dá a tônica; Bethânia
passa da geografia do Brasil profundo para a geografia interna do
país sentimental. Aí está Roberto
Carlos ("Outra vez", "Não Tenha
Medo", "As Flores do Jardim da
Nossa Casa"), aí estão Maysa
("Resposta"), Zezé di Camargo
("É o Amor"), Pixinguinha ("Fala
Baixinho"), Chico Buarque
("Olhos nos Olhos").
"Sonho Meu", de Yvone Lara,
faz a transição para o movimento
final do disco. "Vá buscar quem
mora longe", pede a canção, e Bethânia cumpre a tarefa, política,
numa explosão de força.
Vêm então "Marginália 2", "A
Força Que Nunca Seca", "Assentamento" e "Roda-Viva", a mítica
"Carcará", uma leitura solene e
amarga de um trecho do "Navio
Negreiro", de Castro Alves.
O saldo da viagem: Bethânia
compõe mapas geográficos-afetivos do país, de fora para dentro e
de dentro para fora, gritando no
fim, de modo engajado, e sem receio de sê-lo, que alguma coisa essencial nesse percurso se perdeu,
que o país, enfim, se perdeu.
Há muitos recados implícitos
nesse "Diamante Verdadeiro".
Para o mano Caetano (o contraste
entre os "navios negreiros" de um
e outro é evidente), para a frieza
burocrática com que Gal Costa
relê a bossa nova, para o país de
ACM e FHC, para o barateamento da cultura, o arrivismo em voga, a indiferença, a falta de critérios. Bethânia faz isso cantando,
ocupando com a voz e os pés descalços todos os espaços do palco,
onde se transfigura. Isso basta.
Avaliação:
Disco: Diamante Verdadeiro
Artista: Maria Bethânia
Lançamento: BMG
Quanto: R$ 40 ( em média)
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