São Paulo, Sexta-feira, 19 de Novembro de 1999
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CARLOS HEITOR CONY

O mosteiro dos tijolos de feltro

Nunca entendi o que ele fazia na redação. Geograficamente, ocupava uma mesa na seção dos esportes, dentro da seção do turfe -havia uns dez caras cobrindo o setor. Funcionalmente, era uma mistura de repórter, noticiarista, free-lance e agregado -cumprindo essas atividades em rodízio ou simultaneamente.
No dia em que assassinaram Kennedy, ele me deu uma força, traduzindo uma extensa biografia do presidente assassinado, tinha fama de ser bom no inglês.
Não lembro seu nome. Lembro o apelido: Trancinha. Lembro também sua cara, jovem, de óculos, bigode. Parecia estar sempre rindo, mesmo quando não ria. O que o tornava especial, aliás, especialíssimo, é que vinha escrevendo um monumental romance de 999 páginas (nem uma a mais nem a menos), do qual, aparentemente, tinha somente o título: "O Mosteiro dos Tijolos de Feltro".
Admirava-lhe o título, não a obra, que ainda não existia. Nada de novo nessas 999 páginas de seu livro. Nelson Rodrigues costumava dizer que só se sentiria realizado quando escrevesse um romance com 900 páginas. Trancinha acrescentava 99 páginas ao projeto que Nelson jamais conseguiu realizar.
Nada de novo, também, na conta quase redonda das 999 páginas. O tenente norte-americano J. B. Pinkerton, que na ópera de Puccini procura em Nagasaki um lugar onde possa viver com Madame Butterfly, compra uma casa por 999 anos, com direito a renovar o contrato a cada 999 anos.
Não sei até que ponto o Trancinha inspirou-se nesse lance lírico para estabelecer o tamanho de sua formidável ficção. Tampouco ignoro o conteúdo que ele derramaria nesse latifúndio de papel. Confesso que, anos mais tarde, quando Umberto Eco lançou "O Nome da Rosa", levei um susto. Teria o autor italiano roubado a história do Trancinha, reduzindo-lhe o exagerado tamanho, mas conservado o clima complicado, digno de um mosteiro de tijolos de feltro?
Tudo é possível -gosto de citar essa frase de Machado de Assis, que nem chega a ser uma frase e muito menos é de Machado de Assis. Ele apenas a absorvia da linguagem banal de qualquer um, dando-lhe uma conotação ao mesmo tempo filosófica e irônica.
O tempo passou, perdi Trancinha de vista, o jornal em que trabalhávamos fechou, é agora um estacionamento na av. Gomes Freire. Muita coisa esqueci daqueles anos, mas é raro o dia em que não ameace escrever um romance, não necessariamente com 999 páginas, mas com o mesmo título.
Como seria um mosteiro de tijolos de feltro? Conheço conventos e mosteiros pelo mundo afora, já me hospedei em alguns. A maioria é feita de pedra, muitos são de tijolos, mas tijolos vulgares, feitos de barro. Digamos que houvesse uma olaria especial, que em vez de barro usasse o feltro para fazer tijolos. Quem os compraria? E com que finalidade?
Em linhas gerais, temos dos mosteiros uma idéia romanceada, em que o ofício divino e a vida ascética convivem com patifarias de variadas espécies e com a concupiscência exaltada pela obrigação da castidade.
Como Umberto Eco, é possível que Trancinha seguisse o lugar-comum formado a respeito das comunidades religiosas, que se abrigam em imensas salas de pedras, rasgadas por grandes janelas góticas, pátios coloniais, corredores sombrios, de chão irregular, deformado pelo deslizar de infinitas alpercatas de couro.
Substituindo as pedras pelos tijolos de feltro, que história colocaria eu em tal cenário? Tenho uma, adaptada de lendas medievais que andei lendo numa de minhas passagens por um mosteiro nas vizinhanças de Perugia.
Dito mosteiro, como todos os demais daquela região, ficava no alto de um monte, onde os frades cultivavam uvas e oliveiras para o vinho e o azeite do qual viviam. Lá embaixo, quase na estrada que leva a Roma, morava um camponês com sua filha, uma forte donzela, com aquele rosto intrigante que ainda hoje encontramos nos anjinhos das igrejas da Úmbria.
Os dois ajudavam os frades na época da colheita. A moça apareceu grávida. Só podia ser um dos frades. Reunida na sala maior do mosteiro, a comunidade invocou o Espírito Santo para descobrir quem seria o sedutor da moça. E não foi difícil chegar ao culpado.
Havia um noviço muito bonito, implicavam com ele justamente por ser muito bonito. Constava que sua beleza havia transtornado a fé e a castidade de alguns frades. Só podia ter sido ele. Como não admitia a culpa, foi condenado a ficar sem água e sem alimento até que confessasse o pecado.
Após uma semana, foram buscá-lo para novo interrogatório. Encontraram-no nu, deitado no chão, morto. Horrorizados, os frades descobriram que o noviço era uma jovem, que se disfarçava de homem para entrar no mosteiro e fugir do padrasto, que a perseguia por sua beleza. Beleza que ela tentara guardar no mistério e no silêncio de um mosteiro de tijolos de feltro.



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