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CARLOS HEITOR CONY
O mosteiro dos tijolos de feltro
Nunca entendi o que ele fazia
na redação. Geograficamente,
ocupava uma mesa na seção dos
esportes, dentro da seção do turfe
-havia uns dez caras cobrindo o
setor. Funcionalmente, era uma
mistura de repórter, noticiarista,
free-lance e agregado -cumprindo essas atividades em rodízio ou
simultaneamente.
No dia em que assassinaram
Kennedy, ele me deu uma força,
traduzindo uma extensa biografia do presidente assassinado, tinha fama de ser bom no inglês.
Não lembro seu nome. Lembro
o apelido: Trancinha. Lembro
também sua cara, jovem, de óculos, bigode. Parecia estar sempre
rindo, mesmo quando não ria. O
que o tornava especial, aliás, especialíssimo, é que vinha escrevendo
um monumental romance de 999
páginas (nem uma a mais nem a
menos), do qual, aparentemente,
tinha somente o título: "O Mosteiro dos Tijolos de Feltro".
Admirava-lhe o título, não a
obra, que ainda não existia. Nada
de novo nessas 999 páginas de seu
livro. Nelson Rodrigues costumava dizer que só se sentiria realizado quando escrevesse um romance com 900 páginas. Trancinha
acrescentava 99 páginas ao projeto que Nelson jamais conseguiu
realizar.
Nada de novo, também, na conta quase redonda das 999 páginas. O tenente norte-americano J.
B. Pinkerton, que na ópera de
Puccini procura em Nagasaki um
lugar onde possa viver com Madame Butterfly, compra uma casa
por 999 anos, com direito a renovar o contrato a cada 999 anos.
Não sei até que ponto o Trancinha inspirou-se nesse lance lírico
para estabelecer o tamanho de
sua formidável ficção. Tampouco
ignoro o conteúdo que ele derramaria nesse latifúndio de papel.
Confesso que, anos mais tarde,
quando Umberto Eco lançou "O
Nome da Rosa", levei um susto.
Teria o autor italiano roubado a
história do Trancinha, reduzindo-lhe o exagerado tamanho, mas
conservado o clima complicado,
digno de um mosteiro de tijolos de
feltro?
Tudo é possível -gosto de citar
essa frase de Machado de Assis,
que nem chega a ser uma frase e
muito menos é de Machado de
Assis. Ele apenas a absorvia da
linguagem banal de qualquer um,
dando-lhe uma conotação ao
mesmo tempo filosófica e irônica.
O tempo passou, perdi Trancinha de vista, o jornal em que trabalhávamos fechou, é agora um
estacionamento na av. Gomes
Freire. Muita coisa esqueci daqueles anos, mas é raro o dia em
que não ameace escrever um romance, não necessariamente com
999 páginas, mas com o mesmo título.
Como seria um mosteiro de tijolos de feltro? Conheço conventos e
mosteiros pelo mundo afora, já
me hospedei em alguns. A maioria é feita de pedra, muitos são de
tijolos, mas tijolos vulgares, feitos
de barro. Digamos que houvesse
uma olaria especial, que em vez
de barro usasse o feltro para fazer
tijolos. Quem os compraria? E
com que finalidade?
Em linhas gerais, temos dos
mosteiros uma idéia romanceada, em que o ofício divino e a vida
ascética convivem com patifarias
de variadas espécies e com a concupiscência exaltada pela obrigação da castidade.
Como Umberto Eco, é possível
que Trancinha seguisse o lugar-comum formado a respeito das
comunidades religiosas, que se
abrigam em imensas salas de pedras, rasgadas por grandes janelas góticas, pátios coloniais, corredores sombrios, de chão irregular,
deformado pelo deslizar de infinitas alpercatas de couro.
Substituindo as pedras pelos tijolos de feltro, que história colocaria eu em tal cenário? Tenho uma,
adaptada de lendas medievais
que andei lendo numa de minhas
passagens por um mosteiro nas vizinhanças de Perugia.
Dito mosteiro, como todos os demais daquela região, ficava no alto de um monte, onde os frades
cultivavam uvas e oliveiras para o
vinho e o azeite do qual viviam.
Lá embaixo, quase na estrada que
leva a Roma, morava um camponês com sua filha, uma forte donzela, com aquele rosto intrigante
que ainda hoje encontramos nos
anjinhos das igrejas da Úmbria.
Os dois ajudavam os frades na
época da colheita. A moça apareceu grávida. Só podia ser um dos
frades. Reunida na sala maior do
mosteiro, a comunidade invocou
o Espírito Santo para descobrir
quem seria o sedutor da moça. E
não foi difícil chegar ao culpado.
Havia um noviço muito bonito,
implicavam com ele justamente
por ser muito bonito. Constava
que sua beleza havia transtornado a fé e a castidade de alguns frades. Só podia ter sido ele. Como
não admitia a culpa, foi condenado a ficar sem água e sem alimento até que confessasse o pecado.
Após uma semana, foram buscá-lo para novo interrogatório.
Encontraram-no nu, deitado no
chão, morto. Horrorizados, os frades descobriram que o noviço era
uma jovem, que se disfarçava de
homem para entrar no mosteiro e
fugir do padrasto, que a perseguia
por sua beleza. Beleza que ela tentara guardar no mistério e no silêncio de um mosteiro de tijolos de
feltro.
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